Apesar da sua insignificância, a Via Caetani, em Roma, não é uma rua qualquer. Não tanto por ser onde as Brigadas Vermelhas deixaram a Renault 4L com o corpo de Aldo Moro, mas por ficar entre as sedes da Democracia Cristã e do Partido Comunista. Isto, 55 dias depois de ser raptado na manhã em que se iria selar um acordo histórico entre os dois partidos. O cadáver na Via Caetani tem, por isso, um eloquente significado: rejeição de um compromisso entre uma esquerda e uma direita para as quais o mundo não tem de ser a preto e branco, eliminando tons intermédios como o cinzento. Aldo Moro e Berlinguer, seriam, neste sentido, políticos cinzentos. Como seria cinzento George Washington diante de Robespierre, Plekhanov diante de Estaline, Manuel Azaña diante de Primo de Rivera, Friedrich Ebert diante de Adolph Hitler ou Ramalho Eanes diante de Otelo. Independentemente do que possa ser hoje a esquerda e a direita, é no centro político que se joga a sobrevivência da democracia, do Estado de Direito, da sociedade liberal. Ser de esquerda ou direita radical é muito fácil: como um bebé, basta berrar ou balbuciar sons sem especial substância, ou ver uma ameaça em cada rosto que não pertença à família. Ao contrário do que acontece com ideais revolucionários, de esquerda ou direita, o centro não é mobilizador, apaixonante, nem sendo fácil dar a vida por ele. Mas a luta pelo seu não apagamento será a mais importante das lutas políticas no futuro mais próximo. Impedir que o centro se transforme, como a via Caetani, no lugar do morto.
PONTEIROS PARADOS
31 março, 2023
29 março, 2023
DOUTA IGNORÂNCIA
Acabei de corrigir uma fornada de testes sobre a teoria apresentada por Thomas Kuhn na obra "A Estrutura das Revoluções Científicas", visando o problema da objectividade e progresso da ciência. De uma turma onde entretanto já andamos à volta da definição da arte, antes de mudarmos para o problema da existência de Deus. Noutra turma, a conversa é sobre o critério ético de uma acção, entrando-se de seguida na questão da justiça distributiva, isto, numa turma de Economia, o que pode contribuir para apimentar o problema. E quer o programa da disciplina que o façamos usando modus ponens, modus tollens e outros modos argumentativos Não há disciplina com tanta diversidade e heterogeneidade, mas bate certo. Há mais de 40 anos, logo na primeira aula, dizia, com ar divertido, o meu professor de Filosofia Antiga, que tinha todo o Platão na ponta da língua, que deveríamos sair do curso a poder falar de tudo. Pelos vistos tinha razão. Mas, ao contrário de um físico, historiador, economista ou advogado, que sabem coisas, eu nada sei. Se me perguntarem o que é o Bem para Platão, o dever para Kant, o Deus de Santo Agostinho, a essência de um obra de arte para Clive Bell, ou para Popper a natureza hipotético-dedutiva da investigação científica, sei responder, e será graças a sabê-lo e ensiná-lo que irei ter comida no prato mais logo ao almoço. Mas, ao contrário de quem sabe o que é a termodinâmica ou a lei da oferta e da procura, sei lá eu o que é o Bem, o dever, Deus, o que terão os cientistas que fazer pelos laboratórios e Galápagos deste mundo, ou o que têm em comum o mármore de Bernini e a voz da Callas. Como raposas de Arquíloco, fomos treinados para saber muitas e distintas coisas, mas nada de verdadeiramente importante. Razão tinha Sócrates, que apenas sabia que nada sabia, ou mesmo Kant, que era filósofo e julgava saber coisas, que dizia ser mais importante aprender a filosofar do que aprender Filosofia. Está tudo certo, e o que tenho a fazer é só mesmo baixar a bolinha, que o guarda-redes é anão. Ao ir para Filosofia em vez de Direito, dúvida que me acompanhou até ao momento de decisão, tive o que merecia.
26 março, 2023
PERÍODOS DE CÉU MUITO NUBLADO COM ALGUMAS ABERTAS
21 março, 2023
ESPECTROS UMBROSOS DE ALMAS
A páginas tantas desse grande clássico sobre a imortalidade da alma que é o Fédon, obra que viria a marcar profundamente o mundo cristão, Platão, pela boca de Sócrates, explica haver almas que, devido ao peso de uma vida impura, não se conseguem libertar completamente do corpo após a sua morte, embora também já não estejam alojadas no corpo onde viveram. "Espectros umbrosos de almas" à volta dos túmulos, diz o filósofo, que aqui mais parece um poeta. Já as outras almas, lá foram para o mundo invisível, o seu mundo natural, tão natural como uma selva tropical para um papagaio ou uma paisagem gelada para um urso polar, tal como o mundo visível sê-lo-á do corpo, no qual a alma tem o azar de estar presa entre o nascimento e a morte e condenada a suportar doenças, dores, fome, sede, lavagens diárias ou desejos que só servem para a apoquentar, impedindo-a de se concentrar no que lhe é afim.
No nosso bem material e visível mundo, o grande encanto das ruínas antigas, para além do modo como o tempo foi esculpindo a pedra e os homens tantas vezes a desesculpindo, está na absoluta e silenciosa ausência dos que há muito partiram sem deixar rasto. Já invisíveis num mundo invisível, e nós carne e osso, por ali, entre pedras, perambulando por um passado onde nunca estivemos. Já o desencanto das ruínas recentes resulta da presença de almas que também há muito partiram, mas sem delas se terem libertado. Eu fui ali duas vezes. Da primeira não me lembro, a segunda, há décadas, para ver uma amiga entrar numa peça de Bernardo Santareno na qual só abria a boca para dizer uma única vez: "António!". Passo agora ali, e vejo-me a ver a peça, ou a imaginar todos os que naquela noite a viram, e o que vejo são apenas espectros, uns que já partiram de vez para se juntarem aos espectros das outras ruínas, para viverem todos felizes num mundo invisível sem a mácula do tempo, outros, ainda vivos, mas que, bastante à imagem do edifício, já não são o que foram, ou foram o que já não são. Que ainda ali está, de pé mas derrotado, com a sua alma penada, de joelhos, recusando-se a partir, quem sabe se com esperança de um dia se reanimar.
20 março, 2023
A PLACA
Eis o considerado primeiro filósofo existencialista, para quem a existência é uma terrível encruzilhada de possibilidades. Terrível, pela liberdade de tanto podermos ir em frente, virar à direita ou à esquerda, ou mesmo voltar para atrás. Escolher é terrível, mais ainda por se assumir a responsabilidade da escolha. Felizes das pedras, das plantas, dos animais, por não poderem escolher, logo, não tendo de escolher. Já ser homem, ou antes, ser indivíduo, é suportar o peso de uma consciência que é só sua, avançando com o desespero de uma alternativa diante dos olhos, com a angústia de não sabermos se o que pode ser é o que deve ser. Seguirei a vida de pastor após o curso de Teologia? Caso ou não caso com Regina? Dedicar-me-ei apenas à escrita? Escolho uma vida estética ou ética? O prazer ou o dever? Serei um D. Juan mergulhado no instante, um respeitável e laborioso homem casado mergulhado numa confortável piscina moral, ou mergulharei numa loucura religiosa como a de Abraão diante do filho? Que avenidas ou atalhos me conduzem ao bem ou ao pecado? Socorro!
Últimos dias de Dezembro, um cemitério enorme, muita gente por lá no seu repouso eterno, um frio de fazer gelar os ossos, dos vivos, claro. E eu sem querer ir embora antes de cumprimentar aquele que, para Roger Scruton, compensou o seu fracasso como filósofo com o seu brilhantismo de escritor, mas já desesperado por nunca mais dar com o caminho. Mas eis, de repente, o seu nome com a mais clara e objectiva das indicações, podendo agora ir agora de olhos fechados, ao contrário de tantas outras situações em que os devia ter bem abertos mas preferindo fechá-los. Também filósofo da ironia, jamais preveria o seu nome numa placa para salvar alguém desesperado pelo que seria mais uma escolha. Caso para dizer que em casa de carpinteiro, espeto de ferro, naquele momento, para mim, e ainda que póstuma, a sua obra mais valiosa. Servisse ela para tudo o resto na vida.
19 março, 2023
PRONOMES PESSOALÍSSIMOS
Um simpático e bastante louvável movimento de jovens filósofos chamado "Novo Realismo", veio combater a tendência pós-moderna e relativista segundo a qual a realidade não passa de uma construção social, criticar a ideia de competitividade como motor da sociedade, ou a de dividir a humanidade em nações, raças, culturas ou classes sociais. Defende, pelo contrário, a prevalência de verdades universais que podem e devem ser partilhadas por toda a humanidade.
Um deles, Markus Gabriel, lembra que a palavra alemã Wirklichkeit (realidade) contém no seu seio o pronome Wir (nós). O meu primeiro trabalho na faculdade foi sobre a Fenomenologia do Espírito, onde o conceito de Wirklichkeit é bastante relevante, podendo-se por assim dizer que foi o meu "choque de Wirklichkeit" mal acabei de lá chegar. Li-a bastantes vezes na edição Alemão-Francês, escrevi-a em notas de rodapé, e isso sem alguma vez me passar pela cabeça o pronome Wir, meio camuflado como nos desenhos onde está Wally. Daí achar graça à descoberta, mas sobretudo ao seu potencial de elevada virtude. Mas, talvez como defesa para não me elevar demasiado acima da Wirklichkeit, o que me veio depois logo à cabeça foi o título de um filme de Chantal Akerman que vi há dias: Je tu il elle. Para assim concluir que os pronomes pessoais são como a igualdade entre os homens: todos pessoais, sim, mas uns mais pessoais que outros.
18 março, 2023
PROFUNDIDADE
Queixa-se uma mãe: o filho não faz porque não quer, é tudo uma questão de querer, se ele quisesse fazia. Não sei porquê, talvez um psiquiatra, ante a gravidade das coisas puxo um bocadinho para o disparate. Digo-lhe então, a sorrir, que uma coisa é querer, outra coisa é querer querer e o que pode acontecer é o filho não querer querer. Felizmente, riu e anuiu, como se apenas meia dose a satisfizesse. Quisesse a dose inteira, dizendo-me que, assim sendo, irá dar no mesmo, pois se o filho não quer é porque não quer querer, pois se ele quisesse querer, quereria, eu teria que explicar que ele não queria porque não queria querer, e isso porque não queria querer querer, explicação já algo tortuosa para uma brincadeira. Mas iria ao encontro do que a mãe precisaria de saber, embora não fosse o momento ideal: sabemos lá nós porque queremos o que queremos, não queremos o que não queremos, passamos a querer o que não queríamos ou deixamos de querer o que queríamos. Ou seja, que nós, seres humanos, parecemos uns carapaus mas, lá bem no fundo, somos mesmo peixes de águas profundas.
17 março, 2023
THE TWILIGHT ZONE
Aula de Psicologia de anteontem. Precisava de explicar como é que sendo as imagens bidimensionalmente projectadas na retina, percepcionamos a realidade de um modo tridimensional. Explico, e ocorre-me a ideia de mostrar uma imagem para ajudar a perceber. Dirijo-me ao computador para abrir o Google e só quando mexo no rato, entre inumeríssimas possibilidades, penso numa perspectiva dos Restauradores com a avenida como ponto de fuga. Onde é raro passar, a última vez foi há dois anos a caminho de um restaurante, lugar do qual não tenho qualquer especial memória. Ontem, logo de manhã, recebo esta fotografia no WhatsApp. Nada de texto, só para a remetente me dar notícia de que estava em Lisboa. Facto do qual, na verdade, não fazia a mais pequena ideia. Mas sei lá eu o que é a verdade.
16 março, 2023
VIDA NORMAL
15 março, 2023
REVOLUCIONÁRIOS
Andava na escola primária e, ao voltar à tarde para casa, não me lembro se com um ou dois amigos, escrevi na parede de uma rua ainda hoje pouco percorrida, com um pedaço de giz cor de rosa trazido da sala de aula salazarista, "Abaixo a guerra colonial". Poderia dizer que foi o meu único momento revolucionário em já mais de sessenta anos de vida, não fosse o facto de não passar de um grito desenhado com giz para logo emudecer. Ouvia certas conversas lá em casa mas isso não fazia de mim alguém com uma verdadeira consciência política. Contava, sim, ter um irmão que estava quase a ir para a dita guerra, e também eu já pensava que um dia seria a minha vez. Daí o desabafo escrito com o mesmo empenho e convicção de quem diz uma asneira quando se magoa. Muitos anos depois, estou numa festa do infantário do filho e vou observando um grupo de crianças que joga às escondidas, quando dou conta de um garoto, ainda mais pequeno, que acreditava estar a jogar com os outros, embora ninguém estivesse a jogar com ele. Estava fora mas, pelo seu entusiasmo e empenho ao esconder-se, plenamente convicto da sua importância.
Ora, o que terá levado alguém, num muro em ruínas de um recôndito canto de uma vila portuguesa, a fazer tamanha exigência e com tal intensidade exclamativa? Sem esquecer o Inglês, para assim internacionalizar a sua voz e, quem sabe, levar a sua indignação aos quatro cantos do mundo. Talvez a resposta esteja numa série que ando a ver. Não me puxando nada para ver séries, resolvi ver Esterno Notte, conjunto de seis episódios realizados por Marco Bellocchio sobre o rapto e homicídio de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas. Vou para o quarto episódio e já posso dizer que quem mais ali me atrai, para além de Moro, não são os dirigentes da Democracia Cristã (apesar de Cossiga), não é Paulo VI, mas os jovens revolucionários aos gritos, seja na universidade, na rua, num tribunal. Ouvi-los falar em nome do povo, da classe operária, a amaldiçoarem a democracia burguesa, a cantarem a Internacional, tal como aconteceu em Portugal durante vários anos após o 25 de Abril. E embora sejam ouvidos (como não?) tal como esta frase nazarena é lida, no fundo, são como a criança que brincava sozinha, embora se julgasse o centro da acção. No caso das Brigadas, a brincadeira saiu cara a Aldo Moro, como a tantos outros ali, na Alemanha ou em Portugal. Antes, pois, o revolucionário nazareno, que até me suscitou um sentimento nostálgico ao lembrar-me o que terá tido mais parecença com um momento revolucionário ao longo de uma vida que mal estava a começar e que agora não está longe de terminar.
14 março, 2023
DESENCANTO
A physis divina grega faleceu, morta pelo Deus judaico-cristão. Este mesmo Deus falece, isto é, retira-se e é morto pelo homem que quer ocupar o lugar deixado vago e erguer-se como senhor. Kostas Axelos, A Questão do Fim da Arte e a Poeticidade do Mundo, 1990
Eric Schmidt, ex-engenheiro da Google e conselheiro de Obama para a ciência e tecnologia, publicou um artigo no El País. Fiquemos só pelo lead: "A capacidade de inventar, adoptar e adaptar novas tecnologias, é decisiva na luta pela hegemonia entre os Estados Unidos e a China". Não consigo discordar, seria como discordar da Terra ser um planeta em vez de um queijo. E historicamente nunca foi outra coisa, mesmo sem Estados Unidos e China. A essência da técnica confunde-se com essência do homem e a técnica traz poder, que de resto não é só militar, veja-se o célebre Kitchen Debate no qual Nixon e Kruschev chegam a discutir as virtudes de um espremedor de limão eléctrico. O homem, centro de uma natureza, criada por Deus para ele, fez da natureza uma fábrica para, através da técnica, obter o maior rendimento possível através de matérias-primas, exorbitando assim o consumo, ainda que mal distribuído. Foi sempre assim, e não vejo como deixar de continuar assim.
Mas eu leio o artigo e a minha vontade é voltar ao Carnaval para me disfarçar de Heidegger e rapidamente fugir para um poema de Hölderlin, ou um daqueles quadros de Poussin ou italianos em que deuses e mortais se misturam para habitar poeticamente a terra. Um desejo de evasão, de recusar a humanidade e o peso da história sobre os ombros do nosso século. O homem, impedido pela sua essência técnica, nunca poderá habitar poeticamente a Terra. De resto, o poeta não é verdadeiramente um homem, e não é preciso ser Marinetti ou Champalimaud para ver mais humanidade num martelo pneumático, herdeiro do sílex paleolítico, do que num poema, que não passa de uma sublimação ou acto de resistência do homem face à sua natureza técnica e pragmática. Dizer, como Schmidt, ao comparar a era da I.A. com a da Idade do Bronze, que "Agora, em vez de depender da riqueza dos recursos naturais ou o domínio de uma tecnologia concreta, o poder de um país reside na sua capacidade de inovar continuamente", serve só para mesmo lembrar que, após o desencantamento do mundo, não há mesmo lugar para reencantamentos.
13 março, 2023
CONSERVADORISMO
O Prado está a anunciar para Junho uma exposição onde vai pôr Picasso a dialogar com El Greco. Ainda em Madrid, a partir de Setembro, a Casa de Vélasquez apresentará uma exposição que tem como ponto de partida o Verão de 1957, em que Picasso se isola quatro meses, daí resultando 58 versões de Las Meninas. Acaba de encerrar no Musée des Beaux Arts de Lyon uma exposição na qual, durante três meses, puseram Picasso a dialogar com Poussin. Portanto, El Greco, Vélasquez e Poussin. Mesmo estando em 2023, com todo o século XX atrás e quase 1/4 do século XXI, não consigo pensar num pintor com uma efervescência tão moderna como Picasso. Não por causa do cubismo, das Les Demoiselles d'Avignon dos manuais, e tudo isso. Se há coisa que não falta na história da pintura, e ainda bem, são impulsos modernos. Mas no caso de Picasso, olhando para o seu percurso entre o ano em que chega a Paris com 19 anos e a sua morte, é mesmo de efervescência e inquietação interior incessante procura, necessidade de experimentar novas linguagens. É impressionante o modo como o rapazinho de 19 anos, que entrou pela primeira vez no Prado aos 14 anos com os pais, experimenta tanto em tão pouco tempo. Mas foi a pensar no Enterro do Conde de Orgaz, na igreja de S. Tomé, em Toledo, onde estivera há pouco, que representou o enterro do seu grande amigo Carlos Casagemas, que acabara de se suicidar, trágico acontecimento que, segundo o próprio, deu origem ao seu período azul.
No fundo, o que se passa é o seguinte, e aproveito novamente a célebre imagem de S. Bernardo. Picasso, como tantos outros pintores modernos, e só não digo quase todos para não arriscar uma precipitada generalização, enquanto foi anão, precisou dos ombros largos dos seus antepassados gigantes para ver mais longe. Entretanto, o próprio Picasso, como também tantos outros, cresceu, tornou-se ele próprio um gigante, mas sem nunca esquecer o leite do qual bebeu para crescer. Os antigos gigantes foram-se entretanto ofuscando no meio de tanta arte moderna e sobretudo contemporânea, muita dela protagonizada por autênticas Pop Stars que arrastam multidões, que se deixam atrair pela luz como mosquitos e que mesmo quando vão ao Prado, ao Louvre, à National Gallery ou aos Uffizi é mais para se auto-representarem, andando depois por lá sem saberem bem o que fazer como um bebé a quem põem dois talheres nas mãos. Picasso, o grande Picasso, nunca deixou de pensar nos seus antepassados, assumindo sempre, como também chegou a dizer, que a arte não é filha incógnita, tem sempre um pai e uma mãe, e há que respeitá-los e não os esquecer. E ele, o conservador Picasso, apesar de toda a efervescência juvenil mesmo já depois de velho, nunca deixou de respeitar e lembrar, servindo-se do seu olhar moderno para continuarmos sempre a olhar para eles.
12 março, 2023
Á MAS É VERDE
Dizia eu há pouco que diante da heresia que é o erro ortográfico, logo emerge o Torquemada que há em mim. Tomás de Torquemada, fervoroso católico, não ficou para a história como adepto da misericórdia cristã. O mesmo se dirá de Girolano Savonarola, outro guerreiro da fé católica, mas com uma alma pouca eivada de sentimentos misericordiosos, sendo depois também vítima da falta dela por parte dos católicos que anatematizou. Por cá também tivemos religiosos mais amigos do cacete do que da misericórdia, merecendo destaque o padre José Agostinho de Macedo, homem de muitas e diversificadas cacetadas. Pois bem, não sendo eu cristão, e com tanta dificuldade em imaginar-me na alma de um católico como na mente de um morcego, não nego ser atreito a misercórdias inclinações.
Estando a corrigir testes, sou atingido pela frase: "Tanto os deterministas radicais como os libertistas têm algo em comum, ambos acreditam que á razões que os fazem ter certos comportamentos ou escolhas [...]", que logo inflamou a parte mais sensível do censor de vermelho na mão, que já teve o seu período azul, embora sem a textura poética do de Picasso. Mas eis que a mesma alma que faz da esferográfica uma espada, logo se dulcifica ante a ortográfica heresia. O aluno errou no plano legal? Errou, e dura lex sed lex. Mas o que é a lei, pergunto eu, como já havia perguntado o desmisericordiado Cristo? A lei pode ser dura na sua aplicação, mas flácida na sua natureza, levando-me a pensar ter o aluno errado com elevada inteligência e perspicácia. Se certas consoantes foram vítimas de soez perseguição, passando de mudas a inúteis, para que raio servirá o agá mudo, agá este que, para o ser, nem precisa de ser hagá? Se os próprios italianos escrevem "Umano" e os brasileiros "Úmido" sem vir com isso qualquer mal ao mundo, para quê então o agá em "á", já que á é á, com agá ou sem agá, provando assim o aluno, ao contrário da "atual" língua, não estar de todo gagá. Sublinhei a palavra? Sublinhei. Mas compungido, pois deveria fazê-lo a verde como gesto de misericórdia para com o pecador que deve ser perdoado, pois tal como os invocados por Cristo no seu martírio, não sabe o que faz. Só que, neste caso, sem ter disso culpa, pois não foi dele a criação da Torre de Babel.
11 março, 2023
VAGÃO J
09 março, 2023
RASKÓLNIKOV DE TRAZER POR CASA
08 março, 2023
TRÊS CORES
Ao contrário do que possa parecer, este edifício não será antigo, mas uma reconstrução do original. Quando se pensa em cidades europeias destruídas durante a II Guerra, são Berlim ou Dresden que vêm à cabeça. Mas foi Varsóvia a que teve o maior grau de destruição, sendo literalmente arrasada, reconstruindo-se mais tarde os antigos edifícios de acordo com os originais. Estava um frio de rachar naquela manhã de Janeiro, a neve chegaria pouco depois, e entrámos num café para nos aquecermos. Não me lembro de quê, mas alguma coisa me chamou a atenção naquele edifício, talvez a porta, e resolvi fotografar, quando, de repente, passam a uma enorme velocidade estas três cores que não ficaram para a história como as da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Disse-me uma vez um amigo alemão, esquerdista e anti-sistema, ser a sua bandeira bastante progressista e revolucionária: vermelho dos comunistas, amarelo do clássico "Atomkraft, nein danke" dos ecologistas, o preto dos anarquistas. Cantiga, para um polaco de 1939 ou 1944, difícil de entrar. Ver hoje passar aquelas três cores diante de um edifício outrora arrasado em nome daquelas três cores, é ver apenas três cores de um país vizinho e fazendo parte de uma mesma União Europeia. Mas acredito que um polaco com terríveis traumas de 1939 ou 1944, possa, pavlovianamente, ainda hoje não ganhar para o susto. Krzysztof Kieslowski, de cujo túmulo andei no dia seguinte à procura num enorme (e belo) cemitério, mas que por causa do frio e da neve tive que abandonar mais cedo, tem uma série chamada Três Cores. Fosse ele um realizador mais histórico e político, e ainda bem que não foi, e o mais certo seria, com estas três cores que passam ali de rompante, termos uma série bem diferente.
07 março, 2023
HEIMAT
Durante a aula, interrompo-me para ir ao YouTube em busca da cena na qual a preceptora serena a miudagem com o My Favourite Things, acreditando de antemão que seria tanto do conhecimento das alunas como o que é um transepto. Isto, sem imagem pois só queria mesmo a canção. Para quê? Para nada. Não o tivesse feito e as alunas sairiam da aula a saber o mesmo. Mas, especialista em dizer ou fazer coisas que não servem para nada, apenas me limitei a seguir a minha natureza. Entretanto, começam a ouvir a canção e logo algumas reagem com visível satisfação, identificando o filme, dizendo uma ser aquela a sua canção preferida, outra, que é aquela das notas musicais. E eu, sem querer acreditar no que estava a ouvir, num estado de feliz perplexidade como se o meu tempo perdido fosse reencontrado naquelas garotas a meio caminho entre poderem ser minhas filhas e netas.
Dou aulas há muitos anos, fui professor de um pai e de duas mães daquelas alunas. Quando comecei não estava muito longe da idade deles. Mas ir envelhecendo enquanto os alunos que todos os anos tenho à frente permanecem sempre na mesma idade, faz com que os seus mundos, muito naturalmente, tenham cada vez menos que ver com o meu. Mas naquele momento, e apesar da diferença de idades, tive uma sensação de pertença graças à experiência de um tempo suspenso. Mais cedo ou mais tarde irão aparecer alunos que já não irão reconhecer a canção e saber de que filme se trata. Mas também está para breve o dia em que eu já lá não irei estar para, em vez de uma feliz perplexidade, perceber que o meu mundo foi atrás de mim, ou que fui eu atrás dele, até desaparecer como nos finais dos filmes em que se vê um comboio a afastar-se lentamente no horizonte enquanto vai passando a ficha técnica e as pessoas levantadas para se irem embora.
06 março, 2023
CATCH 22 CANÓNICO
«[...] e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha. Às vezes revoltava-se contra estes desfalecimentos, batia o pé: - Que diabo, é necessário ter juízo! É necessário ser homem! Descia, ia folhear o seu Breviário; mas a voz de Amélia falava em cima, o tic-tic das suas botinas batia o soalho... Adeus! A devoção caía como uma vela a que falta o vento. As boas resoluções fugiam, e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cérebro [...] Ficava todo subjugado, sofria. E lamentava então a sua liberdade perdida: como desejaria não a ver, estar longe de Leiria, numa aldeia solitária, entre gente pacífica, com um criada velha cheia de provérbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e os galos cacarejam ao sol! Mas Amélia, de cima, chamava-o - e o encanto recomeçava, mais penetrante.»
Calhou ter lido primeiro O Crime do Padre Mouret, ainda no tempo da faculdade. Gostei muito, o que pode ter contribuído, pela inevitável comparação, a considerar pouco tempo depois O Crime do Padre Amaro uns furos abaixo. Mas há uns dois anos regressei ao romance de Eça e, já sem o espectro de Mouret a assombrá-lo, lá me rendi. Há dois Amaros, o do final, que se revela frio, calculista, egoísta, diria mesmo execrável. Mas não temos como não simpatizar com o jovem Amaro do início, mentalmente são num corpo são, sentindo-se, nunca tanto como hoje, à medida que melhor se conhecem os bastidores da Igreja Católica, a sua naturalíssima relação com Amélia como lufada de ar fresco numa sala irrespirável e bem longe de coincidir apenas com a beata e bafienta Leiria do século XIX. Ao sentir revolta, dizendo a si próprio para ter juízo e ser homem, o jovem Amaro acredita que o fará pelo dever de deixar de o ser e que quanto mais homem for, menos homem será, ou que quanto menos homem for, mais homem será. Mas é precisamente o contrário e, neste sentido, lamenta-se a, pelos vistos, enorme falta de homens na Igreja Católica. Talvez as mulheres pudessem dar uma ajuda, não significando isto que se deva à falta delas o dramático peso de tanto homem com medo de o ser. Talvez seja antes o medo de o ser que os leva até um refúgio onde as mulheres continuam a não ter lugar.
02 março, 2023
SARA
Hotel pequeno e familiar, a recepção mesmo ao lado da sala dos pequenos almoços. A recepcionista, loira, olhos azuis, quer dizer, ar absolutamente gaulês (daria uma excelente Marianne), servia também o pequeno almoço. Perguntava-me o que queria tomar, eu dizia, esperava sentado e ela servia, dizendo-se apenas as palavras da praxe nestas circunstâncias, isto, claro, em Francês. Uma simpatia franca mas contida, mesmo estando sempre sozinho na sala, excepto numa manhã em que estavam duas mulheres noutra mesa. Ainda brinquei, dizendo-lhe que não devia ser nada fácil começar a trabalhar àquela hora (eu sou sempre o primeiro a chegar ao pequeno-almoço), ela riu, sim, não é nada fácil, e a coisa ficou por aqui.
Na última manhã, estando de novo sozinho, percebendo que ela estaria com vagar, aproveito para esclarecer uma dúvida, e pergunto se por ali não se gozavam férias de Carnaval. Explicou que não, embora aproveitem para realizar umas actividades alternativas e, posto isto, pergunta-me de onde venho. Digo que sou português e logo um imprevisto sorriso lhe abre todo o rosto: "Eu sou brasileira!". Logo subindo a familiaridade de tom, é então que, já respectivamente na língua de Eça e de Machado de Assis, passamos às apresentações. No caso dela, vinda de São Paulo, onde estudou Neurociências, que interrompeu, estando agora ali no primeiro ano de Ciências Cognitivas, tendo aquele part-time no hotel. Eu devo ter feito aquela cara de Lobo Mau dos desenhos animados quando se põe a imaginar um frango a rolar no espeto, digo que sou de Filosofia, ela faz aquela cara de Lobo Mau dos desenhos animados quando se põe a imaginar um frango a rolar no espeto, e, pouco depois, com todo o vagar do mundo, já estamos a falar de história da ciência, das ciências serem filhas da Filosofia, do cérebro e da mente, do Quarto Chinês, ela de Espinosa e eu do Cogito cartesiano e sei lá mais o quê. Horas depois, durante o check out, após calorosa despedida, lembro que se não fosse a minha pergunta sobre as férias do Carnaval, eu ficaria esquecido na minha condição de mais um cliente estrangeiro numa sala de pequenos-almoços, e ela esquecida na sua condição de mais uma recepcionista francesa que, delicada mas contidamente, mos servia. Graças ao Carnaval, que detesto, fiquei com uma história para contar.
01 março, 2023
M DE MARIA E DE MARTA
28 fevereiro, 2023
A CAVE
Para tratar de questões morais tanto se pode ir das ideias para a vida como da vida para as ideias. Na mesma linha do que faz Rafael na Escola de Atenas: Platão com o dedo elegantemente apontado para o alto, Aristóteles esticando o braço para a frente. Para início de conversa sobre o que pode ser uma vida boa, John Kekes, um filósofo conservador, propõe substituir o platónico dedo em riste, demasiado geral e descarnado, pelos exemplos da literatura e biografias, dialogando com personagens com cujas experiências podemos aprender. Eu aproveito logo para me imaginar a comer javali com Macbeth, a tomar chá com Isabel Archer ou Anna Karenina, dar um passeio com Julien Sorel ou Pierre Bezukhov, beber um copo de vinho com Jean Valjean ou Martin Eden, ir à pesca com Robinson Crusoe, ou estar sentado à beira de um regato com a pastora Marcela.
Sem dúvida, estimulante. Mas, por muito ilustrativas que sejam as vidas dos outros, os bons ou maus exemplos, ao entrarem na nossa consciência logo se convertem em fantasmas. A consciência de que peixe cozido com legumes é mais saudável do que um bife de carne vermelha com batatas fritas não nos faz desejar o peixe nem repudiar a carne. É verdade que uma consciência aberta ao exterior trará sempre alguma luz ao nosso caminho. Não faltam mesmo luzes que mais parecem um esplendoroso fogo de artifício. Acontece não ser a consciência e a inteligência a comandarem a vida, mas a vontade. Ou a falta dela. E a vontade nem está para onde aponta o dedo de Platão, nem à frente dos olhos de Aristóteles. A vontade é uma cave húmida e escura onde nunca se sabe o que se pode encontrar.
27 fevereiro, 2023
RATOS E HOMENS
26 fevereiro, 2023
PONTOS DE EXCLAMAÇÃO
O Ípsilon deste fim-de-semana traz um artigo sobre uma banda da qual nunca tinha ouvido falar, que acabou em 1998, com apenas dois álbuns publicados, embora com algumas, raras, aparições, saindo agora uma reedição, daí o artigo. Como quase sempre quando não conheço uma banda, vou bisbilhotar para perceber do que se está a falar, logo vendo se me interessa. Interessou, e envio para o WhatsApp dos filhos um link da canção In the Aeroplane Over the Sea, presumindo, creio que legitimamente, não conhecerem: o filho nasce no ano em que a banda acaba, estando a filha ainda longe de sequer sonhar que terá a sua fase Britney Spears e Cristina Aguilera por volta dos doze anos. Minutos depois, mensagem do filho: "Esse álbum é um clássico!", e envia um link com a sua canção preferida.
Eu não sei o que é o tempo. Sei que que a nossa relação com ele, que é coisa diferente, tanto pode ser um arame esticadinho no qual um ponto Y sucede a um ponto X e antecede um ponto Z, como um arame em forma de espiral ou com curvas e contracurvas aleatoriamente sobrepostas. Um torrejano que vive em 1830, fica quase circunscrito a um ponto fixo, vendo Tomar, Abrantes ou Santarém como pontos distantes, quase inacessíveis. Hoje, saindo de casa cedo, pode almoçar em qualquer ponto de Portugal ou da Europa. Os pontos no espaço, como na história de Aquiles e a tartaruga, são os mesmos, a nossa relação com eles é que mudou. Passa-se o mesmo com os pontos do tempo. Em 2023, com 62 anos, o pai descobre uma banda que termina em 1998, que o filho, que nasce nesse ano, hoje com 25 anos, considera um clássico, quando o pai, que tem 38 anos quando o grupo acaba é que, 25 anos depois, deveria tal considerar. O filho, num ponto futuro, chega a um outro que o antecede 25 anos, enquanto o pai, num ponto passado, chega 25 anos depois a esse mesmo ponto que antes lhe passou ao lado. Leibniz, o filósofo e matemático, iria gostar de viver no século XXI.
25 fevereiro, 2023
J'EST UN AUTRE
Reli há dias um romance que já tinha lido há mais de 40 anos e do qual já nada me lembrava a não ser duas coisas: uma, ser uma história de amor, a outra, que gostei imenso de ler e na altura me marcou, embora sem já saber porquê. Desta vez, porém, detestei-o, quase no limiar do insuportável. Nada de anormal ter, em tempos, gostado de coisas das quais já não gosto por essa parte de mim que me levou a gostar já não existir. Mas basta um pequeno esforço de memória para compreender por que gostei. É como me ver agora numa fotografia, aos vinte anos, na praia. Já não sou essa pessoa, não penso o que pensava, não sinto o que sentia, os meus olhos já não vêem o que viam aqueles olhos, mas lembro-me do que pensava, sentia e o que viam aquele olhos. Mas o que agora me aconteceu é assustador. A pessoa que agora detestou o livro, pensa na pessoa que gostou tanto dele e foi por ele marcada, e não consegue vê-la ou sequer situá-la. Já não se trata de ver o mesmo no outro, ou o outro no mesmo, mas de me confrontar com uma absoluta alteridade dentro de mim mesmo. Neste caso, não há uma fotografia na qual revejo o que fui, ficando assim impedido de me ver, como se fosse truncado, roubando-me a mim mesmo sem deixar rasto. Olho, e o que vejo é apenas um vazio, um espaço em branco onde antes esteve o que pensava e sentia, ou os mesmos olhos que liam palavras que dedilhavam virtuosamente as cordas do espírito e que agora geram uma irritante cacofonia. Eis, pois, uma parte de mim que morreu, antecipando, diria que com alguma pedagogia, o que irá um dia acontecer ao todo que sempre foi mais do que a soma das suas partes.
24 fevereiro, 2023
A BORBOLETA
23 fevereiro, 2023
TÂMARAS
Porque na muita sabedoria há muita tristeza, e o que aumenta a sua ciência, aumenta a sua dor. Eclesiastes, I,18
Tenho o hábito de levar de casa frutos secos para lanchar a meio da manhã ou da tarde. Também tâmaras, uma vez ou outra, compradas no supermercado, levando-me assim à suposição de saber em que consiste tal fruto. Entretanto, calhando ver numa cesta um monte de tâmaras de aspecto por mim nunca visto, não resisti a comprar umas tantas para experimentar. Como diria o povo, não tenho palavras e, não sendo poeta nem me chamando Huysmans, não as tenho mesmo para traduzir o que viria a acontecer na minha boca com aquele frutado e licoroso sabor mas também com a sua textura aveludada, ao mesmo tempo firme e macia, a desfazer-se lentamente até ficar apenas um caroço como prova da sua existência. Agora, sim, irei morrer a saber o que é uma tâmara, mas também sei que enquanto não morrer muito dificilmente irei voltar a encontrá-las assim, forçando-me assim, glosando o suplício de Tântalo, à consciência de saber o que é a tâmara perfeita mas com a ainda mais forte consciência de não poder comê-la. A ignorância pode ser uma maldição, mas o conhecimento poderá não o ser menos. Digo-o, apesar de ainda ter o rasto de uma das poucas que ali me restam. Ou, diria antes, por isso mesmo.
17 fevereiro, 2023
A FLORESTA
Estava com a filha ao telefone e, na brincadeira, resolvi chamar-lhe sopeira, não fazendo ela a menor ideia do significado da palavra, associando-a apenas ao facto de estar a fazer sopa. Se, entretanto, lhe tivesse perguntado o que era um magala, também não sabia. Ora, eu cresci num mundo de sopeiras e magalas, um mundo que já não existe, mesmo continuando a existir empregadas domésticas e militares. Porque não é uma questão de nome, mas de realidades sociais e simbólicas completamente distintas. Ora, eu tenho pouco mais de três décadas que a minha filha, uma nesga de tempo historicamente insignificante. Mas a suficiente para uma bifurcação temporal, separando os mundos de duas pessoas da mesma família que falam ao telefone.
Posto isto, perguntemos: o que significa "Grécia Antiga", os cerca de setecentos anos que vão de Homero a Epicuro? E "Idade Média"? À volta de mil anos, e mesmo que falemos de Baixa e Alta Idade Média também são séculos. E o que é o século XVIII, o tal das Luzes? E o século XX, que começa em Sarajevo e acaba em Berlim? Também um dia irão estudar o século XXI, meu e da minha filha, mas o que verão esses futuros estudantes de História? O mesmo que um avião que sobrevoa a floresta da Amazónia: uma mancha verde. Pois é isso que a História no dá: padrões, uniformidades, regularidades, esquecendo, tal como numa floresta sobrevoada, a complexidade, a contingência, subtis flutuações cada mais invisíveis à medida que nos afastamos. Não deve ser nada fácil para o futuro estudante perceber que há um pai de um mundo e uma filha de outro. Tão difícil como para nós imaginar Gravilo Princip a assassinar Helmut Kohl com tudo o que há entre os dois.
16 fevereiro, 2023
O CREPÚSCULO DOS DEUSES
15 fevereiro, 2023
MORRER DE REALIDADE
14 fevereiro, 2023
UM DIA POUCO CÂNDIDO
Pensou bem quem fez coincidir o dia dos namorados com o da disfunção eréctil. Dê lá por onde der, o amor é um estado químico cuja ligação aos circuitos do córtex pré-frontal é a mesma que assola as penitentes vítimas da disfunção eréctil cujas libações amorosas se transformam em desespero sacrificial. Talvez influenciado pelo National Geographic, observar o ritual de levar a amada a jantar, de oferecer flores ou chocolates em forma de coração assim como quem preenche o IRS, lembra-me tentilhões ou esgana-gatos cativos no seu castelo filogenético e submetidos ao poder real do gene egoísta. Nada há de errado nisto, bem pelo contrário, a sábia natureza sabe bem o que faz, seja com as suas recatadas tartarugas ou com os seus pródigos sapiens.
Não se veja em mim um cínico, um herdeiro do grosseiro materialismo francês do século XVIII ou do dialéctico, um fanático do catecismo positivista, um desvairado Resnais deslumbrado com o laboratório do dr. Laborit. Creio, sinceramente, ser o amor coisa bela e a cultivar como um jardim, clássico, barroco ou romântico, ao estilo francês ou inglês conforme o gosto dos enleados e enlevados cândidos deste mundo. E que a sermos atingidos por uma das setas de Cupido, que seja a de Apolo e não a que condenou Dafne à indiferença amorosa, como bem explica Ovídio, não na Arte de Amar no caso deste tão infeliz episódio, mas nas Metamorfoses. Eis porque um «dia dos namorados» consegue ser tão empolgante como um corso carnavalesco em Ovar num melancólico dia de chuva e frio. Daí a feliz coincidência no calendário. É que o viço das flores do jardim não demora a disfuncionalizar-se nos jarros e não é por os chocolates terem forma de coração que deixam de se derreter nas bocas para logo se desvanecerem na imensidão de um corpo já derrotado por súcubos e íncubos.
13 fevereiro, 2023
OS SEUS A SEUS DONOS
09 fevereiro, 2023
RELEGATIO
Arde com a felicidade de Herse, com brandura,
como quando se ateia fogo às ervas e às silvas,
que não produzem chama e se consomem num calor lento.
Ovídio, Metamorfoses, Livro II
Estamos habituados a usar a palavra relegar como verbo, por exemplo, relegar para segundo plano. Mas a sua origem, relegatio, é substantiva, um tipo de exílio na antiga Roma em que a pessoa, ainda assim, não perdia os seus bens e mantinha os direitos cívicos. O próprio Ovídio foi relegado para um território do império onde fica hoje a Roménia. Se olharmos para a história, o que vemos, ao longo de séculos, é a esmagadora maioria da população socialmente exilada. Verdadeiramente exilada. De facto, só uma minoria de privilegiados tinha bens que se vissem e direitos cívicos. Basta pensar em quem, ainda há pouco no início do século XX, tinha o direito de voto, à saúde, à educação. Hoje, um país de gente exilada dá cada vez mais lugar a um país de gente que se sente relegada. Com instrução, vacinada, casa própria, dois carros à porta, que janta fora sexta à noite, com direitos políticos e cívicos, mas que, precisamente por isso, cria expectativas que não satisfaz, ainda para mais assistindo de perto às bodas dos mais privilegiados, sentindo-se assim relegada. Quem arde em fogo lento com a felicidade de Herse é Aglauro, sua irmã, infectada com o vírus da inveja, cuja casa é alegoricamente apresentada por Ovídio de um modo magistral. Não é o fogo de uma floresta ou de um casa a arder, não são altas labaredas que destroem tudo em segundos. É um fogo lento, rasteiro, quase invisível, mas que, não contido, não se sabe quando pára e onde vai parar.
08 fevereiro, 2023
EM FLORENÇA, SÊ FLORENTINO
07 fevereiro, 2023
SAÍDA DE EMERGÊNCIA
Estamos tão habituados à rotina das palavras que deixamos de pensar nelas, se é que alguma vez chegámos a pensar. Se, de rajada, repetirmos dezenas de vezes, oralmente, a palavra «janela», ela vai lentamente perdendo o seu significado, ficando reduzida a três sons tão vazios de sentido como o de uma língua que não compreendemos. Usamos as palavras como ferramentas, alicates, martelos ou chaves de parafusos, centrados apenas na tarefa para que são usadas e não na própria ferramenta. Quanto estamos a pregar um prego, não queremos saber do martelo, o seu design ou origem. Apenas usá-lo, e o mesmo acontece com a natureza, origem ou mesmo o corpo das palavras, às quais recorremos como a uma caixa de ferramentas.
Mas imaginemos um deprimido e existencialmente desesperado estudante italiano de Filosofia que se encosta a este muro aonde vai dar com tão positivo aforismo cujo significado percebe. Acontece que, na sua italiana cabeça, poderá soar uma campainha que o fará ligar uccidere e uscire, ou uscita, talvez a primeira palavra da sua língua que se aprende ao aterrar num aeroporto italiano. Nada de anormal, se partirmos da visão socrático/platónica da morte. Ainda jovem, Platão viu o mestre Sócrates, na véspera da morte a que foi condenado, que alegremente aceitou quando podia ter fugido, em amena cavaqueira e descontraído como uma criança que sai de casa para ir ao Luna Park. Diz Sócrates, num diálogo de Platão chamado Fédon, que ter a alma presa a um corpo, por sua vez preso a um mundo inferior, é uma tremenda chatice. Daí este aforismo ali tão perto do abismo poder ser meio caminho para que o abismo comece a olhar também para o jovem italiano, como diria outro filósofo cuja saída de cena foi diferente: agarrado a um cavalo, em Turim.
06 fevereiro, 2023
PATAVINA
05 fevereiro, 2023
A GRAVIDADE E A GRAÇA
02 fevereiro, 2023
ZONA DE SILÊNCIO
Numa carta de 16 de Fevereiro de 1919 à sua irmã Vanessa, escreve Virginia Woolf ser Walter Sickert o seu pintor preferido. Consideração para ser levada a sério se atendermos às muitas referências a seu respeito, tanto em cartas como no diário. O ano passado, à saída de uma grande e excelente exposição temporária do pintor, nascido alemão mas indo para Inglaterra com 8 anos, comprei um livro de Virginia Woolf onde se encontram todas essas referências em cartas e no diário, mas que tem como verdadeiro centro um texto dedicado ao pintor. Chama-se Walter Sickert: A Conversation, cuja edição original apresenta uma bem moderna capa de Vanessa, que também é Bell porque casada com o filósofo Clive Bell, defensor da teoria formalista da arte.
Há uma imaginária conversa com amigos em que a dada altura estão diante de um livro com reproduções de Sickert. Folheiam-no e instala-se o silêncio. Diz a escritora que, como a maior parte dos ingleses, estão mais treinados para falar do que para olhar, porém, diante daquelas imagens nada conseguem dizer, só abrir e fechar as mãos, tentando exprimir com elas o que não podem as palavras, como também Coleridge não pôde explicar o Kubla Kahn, deixando a tarefa para os críticos. Diz a autora de Mrs Dalloway e artesã do fluxo de consciência, haver «uma zona de silêncio no centro de toda a arte». Ora, é possível falar sobre um quadro, eu próprio, apesar de não ser inglês, o fiz aqui em baixo. Mas para dizer o que está à superfície e toda a gente vê, o que nele é narrável ou conceptualizável. Mas a verdadeira experiência estética, o prazer estético, o que faz dedilhar as cordas da emoção estética, é privado e intransmissível. Talvez a arte esteja mesmo para o nosso tempo como a mística para a Idade Média. E para, muito provavelmente, ficarmos a ganhar.
31 janeiro, 2023
O LUGAR POR VIR
Tal como o tigre e o gato que embora mamíferos e felinos são bastante diferentes, também este quadro de Lorrain e o de Cranach mais abaixo, apesar de partilharem uma mesma idílica e prazenteira atmosfera, estão muito longe um do outro. E refiro-me apenas ao conteúdo, pondo de lado aspectos formais como o desenho, a luz, a cor ou a perspectiva. Cranach revela um cenário mítico, enquanto Lorrain um cenário utópico, sendo categorias distintas. No primeiro, vemos um mundo a-histórico e reduzido a um jardim onde seres humanos e animais se confundem num deleite quase vegetal que define a sua existência. Podemos contemplá-lo, invejá-lo, sonhar com ele e até sentir nostalgia. Mas nostalgia pelo que, enquanto seres humanos propriamente ditos, nunca fomos, nem alguma vez viremos a ser. Mas olha-se depois para o quadro de Lorrain e já somos nós quem ali está: há a cidade, com o que isso implica de político, social, económico, cultural, as pessoas estão vestidas e tocam instrumentos como nós. E já não basta esticar o braço para colher uma maçã, sendo preciso dominar o animal para poder dominar a terra, ou seja, é preciso trabalhar. Porém, sendo nós, também não somos nós, pois onde há humanidade há também dor, conflito, domínio, relações de poder e um agónico fosso entre o mundo do trabalho e o do prazer, nada que aqui se possa ver.
Daí o cenário de Lorrain ser tão a-histórico como o de Cranach, mas num polo oposto: não como anterior, mas posterior à história, esse enorme palco onde a humanidade representa os seus dramas e comédias, umas vezes como calvário onde agoniza, outras como ressurreição para novas vidas. Mas que nós, em plena representação, podemos entender como ideal regulador da vida humana na busca de uma felicidade ainda por encontrar. Não existe ainda, é verdade, mas olha-se para o cenário e parece-nos verosímil. Tanto a utopia, como é o caso, como a distopia, são um exercício da imaginação do qual não está ausente, para o bem ou para o mal, a verosimilhança como categoria ideológica. Utopia não é, por isso, necessariamente uma ausência de lugar, podendo apenas ser o que ainda não teve lugar. Do lado esquerdo da paisagem vê-se, quase sepultada na vegetação, a ruína de um mundo irremediavelmente perdido no passado. No lado direito, um outro também perdido mas esperando por nós num futuro por encontrar. Um mundo de harmonia entre sociedade e natureza, razão e sentidos, prazer e realidade, em que o trabalho já não é factor de alienação mas de auto-realização, programa filosófico, político e mesmo económico com o seu epicentro no século XIX. Se isso é mesmo possível já será outra conversa. Mas seja ela qual for, a beleza do quadro é intocável.