A rua onde eu trabalho chama-se Francisco Sá Carneiro. Talvez pelo facto de estar tão habituado a ela como rua onde trabalho e onde diariamente passo mesmo sem trabalhar, nunca pensei nela associada à pessoa do nome. Mas olho por mero acaso para a parte superior do edifício e leio as garrafais letras "Aeroporto Francisco Sá Carneiro", e o que me vem à cabeça não é um simples nome de aeroporto. Como numa sessão de espiritismo, sou visitado pelo rosto e a voz de alguém, amado por uns e odiado por outros, que via diariamente no telejornal e enchia as ruas através de cartazes eleitorais, de alguém cujo velório e funeral, num tempo em que ainda não havia canais de notícias, teve uma transmissão ininterrupta durante dois dias. E que eu, apesar de nunca ter sido do seu partido, fui ver discursar aqui na terra, num enorme cinema a abarrotar só para o ver e ouvir. Enfim, uma pessoa quase familiar. Mas o que verá um jovem diante do nome "Francisco Sá Carneiro", seja num aeroporto, rua ou praça? Há-de ser o mesmo que vê quando passa na rua Almirante Reis, Elias Garcia, Luciano Cordeiro, Serpa Pinto, Magalhães Lima, Costa Cabral ou no Saldanha. Ou seja: nada. Simples nomes, tão cheios de significado como os indicativos números das ruas de Espinho ou Manhattan, tão impessoais como o "+351" de Portugal ou o "+49" da Alemanha. E de repente percebi o que sentiria um contemporâneo do Almirante Reis ou de Fernandes Tomás se agora ressuscitasse e se apercebesse da ignorância a respeito dessas figuras outrora tão reais. Sentir-se-ia um espectro entre vivos, o mesmo que eu senti diante de toda aquela gente que também por mero caso olhou para aquele nome que ali está para identificar o aeroporto aonde chegam e de onde partem.
PONTEIROS PARADOS
21 setembro, 2023
20 setembro, 2023
ALMAS
19 setembro, 2023
OUVINTES E LOCUTORES
Há muitos anos, uma pessoa que foi a minha casa, reparando na quantidade de cd's na estante (elevada segundo o seu padrão, e o mesmo acontecendo com outros em relação aos livros, o que me deixa sempre desconsolado e triste), referiu que não tinha o hábito de os comprar, mas que gostava muito de música, simplesmente deixando os seus critérios de audição nas mãos dos locutores de rádio, rádio que ouvia no carro, em casa e durante o trabalho, provando assim gostar mesmo muito de a ouvir. Foi das coisas mais assustadoras que ouvi em toda a minha vida, contribuindo ainda mais para isso o argumento apresentado: se eles, os locutores, são especialistas em música, se percebem de música como mais ninguém, então, ouvir a que criteriosamente seleccionam para nós significa ouvir a música que se deve ouvir. Tão assustador que, tantos anos depois, não pude esquecer, ressoando ainda a metáfora das mãos quase transformada numa catacrese, uma metáfora que deixa de o ser por se tornar a comum (ou mesmo única) maneira de designar uma coisa. E, tantos depois, ainda sinto um arrepio na alma só de pensar nisto.
14 setembro, 2023
MOLDURAS
Há já algum tempo que passei a dar importância e atenção às molduras e passe-partouts, sobretudo de quadros vindos de colecções particulares para exposições temporárias. Sei com rigor o momento em que começou: uma exposição de Ferdinand Knopff. O que faz sentido, por ser talvez o pintor, e não, ao contrário do que se possa pensar, Gustave Moreau, que detesto, e a cujo museu nunca fui para não me irritar, que mais me sugere a peculiar figura de Des Esseintes. Em exposições de fotografia não há esse esplendor da moldura, quase sempre frias e funcionais, mas os passe-partouts são da maior importância pelo modo como o seu tamanho joga com o da fotografia, sobretudo enormes passe-partouts com fotografias de escala reduzida, dando-lhe assim, algo paradoxalmente, uma evidência bastante maior. Vi recentemente uma exposição na qual Rui Chafes dialoga com a escultura de Alberto Giacometti. A dada altura, havia uma porta que dava acesso a um túnel bastante comprido e escuro, tudo preto, que depois de longamente atravessado iria dar a uma vitrina iluminada para vermos uma peça de poucos centímetros do artista suíço. Genial, pensei. Pode soar ofensivo para uma obra de arte a importância que se dá ao modo como é vestida pela moldura, passe-partout ou dispositivo cenográfico como o de Rui Chafes, parecendo reduzi-la a uma dimensão mais decorativa no momento em que é pendurada na parede de uma sala ou quarto. Até porque, ontologicamente, a moldura nada tem que ver com o quadro, não havendo nada neste que peça aquela moldura. Ou, se pede, reforça ainda mais o propósito decorativo. Mas, depois, olhamos para o quadro e para a moldura e gostamos do todo como se passassem a fazer parte um do outro. Connosco, seres humanos, passa-se o mesmo. Com a diferença, certamente mais rara na pintura ou fotografia, de não faltarem molduras e passe-partouts cuja importância é esmagadoramente maior e mais vistosa do que a do seu conteúdo.
13 setembro, 2023
LUTA INGLÓRIA
Desde o início do Verão que tenho sempre no congelador uma daquelas caixas com dez Magnum de três qualidades e tamanho mais pequeno: chocolate simples, chocolate com amêndoas, e chocolate branco, que no início estranhei mas depois entranhei. Não há vez alguma no supermercado em que não diga a mim mesmo que já não compro mais, pronto, chega, não pode ser, não faz sentido, uma injustificável parvoíce num homem já com idade para ter juízo. Mas, depois, tudo faço, e por vezes de modo até insidioso, para passar por eles e trazê-los, dizendo a mim mesmo que será para comer só um de cada vez, conseguindo a perversa parte de mim afagar e convencer a outra pura e ingénua que assim será. E, na verdade, sempre que em casa abro um gelado é mesmo com a ideia de ser só esse. Mas também não é menos verdade que nunca o consegui. Fatal como o destino, é sempre aos pares que os avio, e até já chegaram a ser três. Por ser sensata e racional, a minha vontade de ter vontade de só comer apenas um gelado é sincera e honesta. Só que esta vontade da vontade vem da razão enquanto a vontade propriamente dita vem da boca, e isso é um problema. O coração, órgão bem escondido e protegido na caixa torácica, pode lá ter as suas razões que a razão desconhece. A boca também tem as suas e apesar de neste caso a razão bem as conhecer, pouco pode contra elas. Estes Magnum, que ainda por cima são minis, representam uma magna derrota para a minha razão a qual, dizem alguns filósofos, é magna, mas que neste caso fica reduzida à sua mini importância. Uma luta inglória, restando-me o consolo, mutatis mutandis, do mesmo Pascal que opinou sobre o coração apesar de não ser cardiologista, quando me diz (§414) que Les hommes sont si nécessairement fous que ce serait être fou par un autre tour de folie que de n'être pas fou.
12 setembro, 2023
RELER
Ninguém come apenas uma vez na vida uma comida de que gosta, só porque já a comeu uma vez. Isso, porque o prazer dessa primeira vez não substitui o prazer das seguintes. O mesmo acontece com uma música que se ouviu, um quadro ou um filme que se viram, uma cidade aonde se foi ou uma pessoa com quem se gostou de conversar. Porquê, então, só ler uma vez um livro do qual se gostou bastante? Isso fará sentido se a leitura for apenas funcional: a trama, quem são as personagens, onde e em que tempo decorre a acção, se A casou com B e se morreu no final, quem é o assassino. Mas se olharmos para o intrínseco prazer da leitura como o da música ou da pintura, porque não repetir esse prazer? Por isso é bom ter tanto de releitor como de leitor. Claro que havendo tantos livros que ainda não se leram, não se pode dedicar o tempo só a reler. Mas a ideia não é reler um livro inteiro, apenas pedaços cujo rasto se vai apagando com o tempo como o rasto de um pastel de nata após minutos, e isso enquanto se faz uma ou duas novas leituras. Mesmo que não se esqueça o eixo narrativo dos livros já lidos, a volúpia literária de certas passagens, a riqueza psicológica ou transmissão de ideias noutras, só é recuperável com a sua leitura efectiva e não com a reconfortante consciência de ter lido o livro como a de quem despachou uma tarefa. E até se podem descobrir coisas que escaparam na primeira leitura, pois continuando o livro a ser o mesmo, nós já não o somos quando a ele regressamos, como a água do rio onde nos banhamos segunda vez. Daí ser possível reler infinitamente os mesmos livros com a mesmo prazer da primeira vez que foram lidos. Ter esse livro para ler e, contrariamente à liberdade invocada pelo poeta, fazê-lo mesmo, tornando-se num dever que dá mesmo muito prazer cumprir.
11 setembro, 2023
VENCEU, CLARO
Logo após o 25 de Abril, ecoava nos ouvidos a frase: «O Chile Vencerá!». A minha melancolia perante esta crença que agora ecoa silenciosamente na minha memória, vinda de um tempo desaparecido, não é a mesma que diante do irreversível silêncio de um anfiteatro grego. É antes motivada pela pueril consciência daquelas pessoas a gritar uma frase que desafia o tempo como o forcado desafia o touro antes deste investir, porque apesar de acreditar que vai conseguir pegá-lo, também o respeita e teme. Só que o tempo, como alguns tigres, diferentes do touro na arena, é feito de papel, deixando-se naturalmente pegar para nele escrever um texto já previamente escrito. Quando um chileno acredita que a sua selecção irá ganhar à do Brasil, exprimindo o seu desejo na frase "O Chile vai vencer!", ou uma pessoa acredita que irá vencer um cancro, sabe que isso pode não acontecer. Ainda assim, a esperança é legítima por se acreditar que uma feliz conjugação de factores permite concretizar o desejo. Só que há uma enorme diferença entre "O Chile Vencerá" de 1974 e a vitória do Chile num jogo de futebol ou a vitória sobre um cancro. Essa diferença chama-se história. O Chile iria sempre vencer pois a história a isso obriga, como se esta fosse um árbitro comprado que permite saber antecipadamente quem irá ganhar o jogo, neste caso, as democracias contra as ditaduras militares dos países da outrora célebre Latina America, dos Jafumega, jogos disputados em Buenos Aires, Montevideu, Brasília, Assunção e sim, Santiago do Chile. Daí que gritassem como quem diz «Exigimos que depois do Inverno venha a Primavera!», «Queremos que depois de 1974 venha 1975!». sem perceberem que lêem a história como quem lê um livro policial cujo final já lá está, só não se sabe é quando.
10 setembro, 2023
DESINTRODUÇÃO À ÉTICA
Após todos estes anos, devo concluir que, não abdicando categoricamente de certos categóricos princípios, sou mais homem de fins, reconhecendo, todavia, que há-de ser no meio que está virtude, embora com a desconfortável noção de tal meio não existir.
08 setembro, 2023
VOZES DO SILÊNCIO
Ninguém dispõe aleatoriamente os livros nas prateleiras. Mas há excepções: a pintora Maria Helena Vieira da Silva dispunha-os por cores, fazendo com que literatura, ensaio, sociologia, romance, poesia, jardinagem, enciclopédia, arte, português, russo, contemporâneo, medieval, Ionesco ou Balzac, tudo isso perdesse significado, podendo-se assim juntar a Ilíada e um Manual de Primeiros Socorros só pelas cores, embora também não fosse descabido pelos respectivos conteúdos. Descubro algo parecido nas conversas quando por acaso duas pessoas se encontram na rua ou no supermercado, ou mesmo por vezes quando fazem por se encontrar. A única diferença é serem sons em vez de cores, cujos timbres, mais sopranos ou baixos, mais tenores ou barítonos, têm muito de cor, ou seja, mais quentes, frios, metálicos, pregnantes, leves, baços, cristalinos. As conversas estão lá, como os conteúdos dos livros na prateleira, mas o que só mesmo conta são os meus sons para lhe provar que tenho a consciência de ele estar à minha frente, e os sons do outro para me provar que tem a consciência de que estou à frente dele, numa espécie de "You Jane, me Tarzan". Daí que talvez não fosse necessário falar, havendo formas mais simples de comunicação, como as cores numa estante. As pessoas diriam "Olá!", e em vez de falarem, poderiam assobiar, chilrear, uivar (como no O Último Tango em Paris), bater palmas, dar saltos, fazer coreografias ou caretas, ou até mesmo ligarem o cronómetro do telemóvel para ficarem apenas a sorrir durante quatro minutos e trinta e três segundos. Depois era só acenar com o braço e ir cada uma para seu lado até ao encontro seguinte, algures nas prateleiras dos chocolates, legumes ou detergentes, tão silenciosamente coloridas como as dos livros ou uma conversa entre duas pessoas.
07 setembro, 2023
A CLAREIRA
Recordar a festa de aniversário dos 7 anos, estar na cama a ler aos 12, uma manhã de praia aos 15 e a primeira aula como professor, faz tudo parte da memória episódica. O que vai emergindo na minha consciência são acções ocorridas no espaço e que por isso não podem coincidir na minha tela mental. Não consigo estar ao mesmo tempo a pensar na festa de aniversário e na primeira aula, a invocação de uma implica o apagamento da outra. Paul Klee, filho de um professor de música, casado com uma pianista, tocando violino uma hora por dia durante anos, estava tão ligado à música que hesitou entre esta e a pintura. Esta passagem do seu diário ajuda a entender a sua escolha: «A pintura polifónica é superior à música porque o temporal é aí mais espacial. A noção de simultaneidade revela-se aí ainda mais rica». Faz sentido. A música é um entrelaçamento de sons e silêncio dispostos num tempo sem espaço, enquanto a pintura é um entrelaçamento de formas e cores dispostas temporalmente no espaço. Daí que na música cada som morra ao ser substituído por outro, uma sonata se reduza a nada logo que deixa de ser tocada. O tempo na música sofre, pois, como sugere Klee, de um problema de espaço. O que já não acontece com a pintura, seja mais figurativa ou mais abstracta, ao reduzir a multiplicidade da consciência temporal a uma simples imagem. Dá-se, assim, um fenómeno curioso: o que acontece na nossa tela mental onde se projecta a memória episódica através de pequenos clarões que se acendem e apagam, está mais próximo da música (ou mesmo do literário fluxo de consciência), onde não há telas, apenas sons que também se acendem e apagam, do que na tela física da pintura, onde o espaço e o tempo se entrelaçam, podendo-se assim assistir, em simultâneo, a diferentes memórias. Já não como clarões, antes sólidas imagens reveladas na clareira de um bosque cerrado, para se prenderem tão firmemente aos nossos olhos como a duas mãos.
06 setembro, 2023
O PARADIGMA PERDIDO
Edgar Morin já vai com 102 anos. Quando, há décadas, eu via uma pessoa com 100 anos, era com um misto de perplexidade e fascínio que, associando o seu nascimento a uma época histórica, pensava na sua coexistência com remotos acontecimentos do século XIX ou inícios do século XX, e de eu estar a coexistir com essa pessoa, o que faria com que me sentisse, especularmente, a coexistir com esses acontecimentos. Ainda hoje fico impressionado ao descobrir que certas pessoas do século XIX pelas quais me interesso, morreram já depois de eu ter nascido, ou seja, coexisti com elas. Acontece que um homem com 102 anos nasceu em 1921, já não podendo ter visto Nietzsche como chegou a ver Giovanni Papini ainda criança, embora sem saber quem era, nem ter estado na guerra de 14-18. Nasceu apenas 39 anos antes de mim, a idade de um jovem. Daí, hoje, não ver uma pessoa com 102 anos tão velha como via dantes, pois apesar dos seus 102 anos, parece, historicamente, um jovem. Mas não é. Um engano que se explica por nem sempre me lembrar que também já não o sou, e que, para uma criança actual, o ano em que nasci é como foi para mim o final do século XIX ou inícios do século XX. 102 anos é mesmo muito tempo, e embora o tempo passe a fugir, nós não fugimos do tempo.
05 setembro, 2023
ESPELHOS
Num pequeno romance chamado "A Lentidão", Milan Kundera compara o rei checo Vaclav (sec. XIV) com Carlos, agora rei britânico, na altura apenas príncipe. Com uma certa graça, explica que enquanto o primeiro conseguia andar, incógnito, pelas tabernas no meio do povo, Carlos, nem numa floresta virgem ou escondido num bunker consegue escapar aos olhos do mundo. Partindo desta comparação, direi que, hoje, todos queremos ser Carlos, alcançar a glória de Carlos que, mesmo sem nada fazer, tem os olhos do mundo sobre si. Houve um tempo em que se chegava a casa para, na sombra, se sentar no sofá a ver televisão, assistindo ao espectáculo do mundo e dos seus protagonistas. Hoje, trocando-se cada vez mais a televisão pelas redes sociais, chega-se a casa sobretudo para especular. Começa-se mal se entra no elevador, neste caso fisicamente, mas continuando depois, no recato do lar, através de um computador ou do telefone, onde quase tudo o que se faz serve para especular. Não nos vemos directamente uns aos outros, andando antes meio perdidos entre os nossos reflexos como nas salas de espelhos das antigas feiras.
01 setembro, 2023
DIA FELIZ
Finalmente, mês e tal depois, apresento-me ao serviço. Já mal podia esperar por este dia. Doravante, deixo de ter umas férias de um mês, para passar a ter, durante um ano inteiro, uma miríade de fins-de-semana. As férias constituem apenas uma unidade na qual são expulsos os fins-de-semana. Pelo contrário, hoje apresento-me e já estou a entrar de fim-de-semana, esse chão sagrado que as férias fizeram esquecer. E cinco dias depois, já a 8 de Setembro, um outro, e assim durante todo o Setembro, Outubro, Novembro...até Agosto, carradas de fins-de-semana, fins-de-semana em catadupa, mãos cheias de fins-de-semana, lenta e suavemente saboreados sem chegarem a encher a barriga como nesse enjoativo banquete romano que são as férias, durante as quais se vomitam dias de tédio. Ou se masca tempo, como dizia o Cioran, esse grande humorista. Beckett, que não lhe ficava atrás mas com outro sotaque, escreveu Dias Felizes, dias sem data. Sei, porém, que há um Dia Feliz que é o dia 1 de Setembro, abrindo a porta aos dias felizes que irei de novo recuperar. E não me venham dizer que isto é conversa de treta, que na volta ando a fazer Reiki, acções de formação em Mindfulness promovidas pela Junta de Freguesia, ou que agora é que me haveria de dar para ler os livros do Paulo Coelho. Nada disso. Tive durante a adolescência a minha fase dedicada à Anti-Psiquiatria. Creio ser o R.D. Laing que considerava não ser o esquizofrénico um falhado por não se conseguir adaptar à sociedade, mas um tipo cheio de sorte por conseguir não se adaptar. Ora, posso ser muitas coisas, mas esquizofrénico julgo não ser, ou se sou nunca ninguém mo disse. Mas se houver por aí alguma síndrome que explique a minha felicidade por regressar ao trabalho, quero lá saber. Desconfortável vai ser hoje enfrentar colegas com aquele ar de Perséfone no dia em que tem de voltar para o submundo, e eu todo contente com ar de Perséfone no dia em que sobe ao mundo solar, verde e florido para a parte do ano na qual vai ser feliz. Neste caso, não há dois mundos, mas uma mesma escola. O que há são estações do ano desencontradas como nos dois hemisférios e no meu respira-se melhor.
31 agosto, 2023
A LESMA
Quando era adolescente, umas das minhas bandas preferidas tinha um álbum chamado Too Old to Rock 'n' Roll, Too Young to Die. Lembro-me, como se fosse hoje, de estar a matutar neste título, com dificuldade em perceber a sua primeira parte, ao contrário da primeira. Hoje, após consideráveis décadas, não só não tenho dificuldade em percebê-la, como vou até mais longe, assumindo antes, e até com algum alívio, estar old enough to Rock 'n' Roll. Quanto à segunda parte, e apesar da minha já respeitável idade, tudo na mesma como a lesma. A história pode avançar, o Angelus Novus bater as asas alvoraçado, tudo ser composto de rápida mudança, porém, diante da morte seremos sempre adolescentes, apenas um pouco mais lúcidos e conformados do que um adolescente electrificado pelo Rock n' Roll. Digamos que embalados por uma sonata de Schubert, crentes de que possa sensibilizar o anjo para bater as asas mais devagar.
30 agosto, 2023
ESTUDO DA ALMA
Se começarmos a repetir várias vezes uma palavra, entrando naquele estado quase hipnótico de pura concentração nessa palavra, o que fica é apenas um desconsolado som sem significado. Ainda com o Sol longe de aparecer, enquanto esperava por uma hora decente para ir caminhar, aconteceu-me isso com a palavra "Psicologia". Psicologia, Psicologia, Psicologia, Psicologia, Psicologia, Psicologia, Psicologia, até se diluir em quatro sílabas sem sentido. Sentido que, entretanto, recupero, mas na sua origem grega: estudo da alma. E fez-se-me luz: abandonar a ociosa invocação da sua etimologia como faço sempre na minha primeira aula de Psicologia, regredindo dois mil e tal anos para verdadeiramente recuperar esse sentido original. Mas que, no fundo, não se trata de uma regressão, nem de uma recuperação, pois, apesar da sua vetustíssima idade, até bem anterior à da Psicologia, tal estudo foi-se sempre renovando como se acabado de nascer a cada século e a cada ano. Chama-se Literatura.
29 agosto, 2023
VIDROS
Numa cidade, a margem oposta à mais bonita tem a vantagem e o privilégio de estar todos os dias de frente para ela, enquanto esta a desvantagem de estar de frente para a primeira. Ninguém vai a Lisboa para ver Cacilhas, mas a Cacilhas para ver Lisboa. Com as cidades, não há como mudar a situação. Ao contrário dos seres humanos, que se servem de vidros. Uns, espelhados, para assim viverem com o seu reflexo. Mas uma enorme maioria vendo a outra margem pelo vidro de uma janela, acreditando todavia tratar-se de um espelho através do qual orgulhosamente se contemplam.
28 agosto, 2023
PUREZA
Um estudo científico no campo da Psicologia, mostra uma ligação entre princípios morais como os de puro e impuro, ao discurso de ódio. A Psicologia interessa-me pouco, mas a moral bastante. E o estudo levou-me directamente à ideia nazi de arte degenerada sendo, a fortiori, odiada, perseguida e destruída. Basta pensar nos padrões estéticos de Adolph Hitler e do que era para si uma arte pura e ideal, para logo reagir com um enorme bocejo. E o mesmo se passa no campo da moralidade, no qual a pureza, tão geométrica, simétrica, perfeita e regular como a que Hitler projectou para a nova Berlim, não foi feita para seres humanos que também são animais. Inconscientes macacos com um pincel na mão diante de um tela, era mais ou menos isso que os estetas nazis viam nos artistas degenerados. Como disse, a Psicologia interessa-me pouco, mas aprende-se sempre alguma coisa.
26 agosto, 2023
CLASSIS MEDIOCRITAS
Diz a personagem de um livro que acabei de ler, que não há coisa mais triste e horrorosa do que as classes baixas, sendo a identificação com os pobres uma atitude de mau gosto. Como eu a compreendo. Mas também não me parece errado pensar que, embora falando mais baixo, melhor perfumadas, mais elegantes e não tatuadas, o mesmo se passa com as classes mais altas, sendo a identificação com os mais ricos uma atitude de não maior gosto. Fosse a filosofia política uma religião e seria a classe média o seu povo eleito rumo ao Algarve no Verão ou ao centro comercial no Inverno.
25 agosto, 2023
A CABINE
24 agosto, 2023
CHAPÉU-DE-SOL
As línguas são corpos dinâmicos nos quais muita coisa perdura no tempo mas também muita desaparece ou se transforma, adquirindo novos significados. Há dias, tive que explicar o que é uma sombrinha, artefacto concebido para proteger as senhoras do Sol, mas que no século XX, e sem mudar o nome, já servia para proteger as senhoras da chuva. Nome tão vulgar que um dos chocolates mais populares era mesmo a sombrinha de chocolate da Regina. Já os homens não podiam usar as pequenas e coloridas sombrinhas, mas pretos chapéus-de-chuva. Mas o que para muita gente é um chapéu-de-chuva, para muita outra já será um guarda-chuva. No norte, a própria combinação soa absurda, uma vez que por lá, chapéus, apesar de muitos, são apenas os que se põem na cabeça, ou punham, já que a velha boina deu lugar ao boné, ou mesmo a coisa nenhuma, até porque o cabelo, cada vez mais cortado em sofisticadas barbearias, precisa do palco craniano liberto para exibir os seus maneirismos. Mas dizia eu que nas línguas, e quase sempre por força das circunstâncias históricas, há muita coisa que se transforma para adquirir novos significados. Assim, do mesmo modo que as sombrinhas do século XIX passaram de proteger do Sol para proteger da chuva, talvez já tivesse faltado mais para que o antigo e clássico chapéu-de-chuva, ou guarda-chuva, passe a ter um significado obsoleto, por já não ser usado para proteger da chuva, mas do Sol, passando apenas a chamar-se chapéu-de-sol ou guarda-sol. E assim, do mesmo modo que hoje vemos fotografias e pinturas do século XIX onde se vêem senhoras em ensolarados jardins com as sombrinhas que as nossas mães usavam por causa da chuva, talvez no futuro se venha a estar diante de fotografias ou filmes do século XX onde se vêem pessoas a usar o chapéu-de-sol ou guarda-sol por causa da chuva.
23 agosto, 2023
NIRVANAS
22 agosto, 2023
ABORRECIMENTO
Leio hoje no PÚBLICO o que diz a inspectora Nicola Evans sobre a enfermeira assassina: que, fora do trabalho, Lucy tinha uma vida "aborrecida". Fosse em França, onde tudo é extremamente intelectual, e a inspectora uma parisiense de Saint Germain, iria pensar numa mulher melancolizada por um literário spleen novecentista, talvez um ennui existencialista, levando-me a imaginar La Nausée como seu eterno e e irrevogável livro de cabeceira, cuja animação e entusiasmo não é maior do que o de uma lista telefónica ou um filme de Antonioni. Mas sendo britânica, pátria de David Hume, Jonathan Swift, Laurence Sterne, Francis Hutcheson, Thomas Reid, Edmund Burke ou Stuart Mill, adensou ainda mais o mistério. Felizmente, surge na notícia o que entende a inspectora por vida "aborrecida": "Uma vida social saudável, um círculo de amigos, estava com os pais, ia de férias. Não há nada de invulgar em tudo isso, aliás, não há nada que tenhamos encontrado de invulgar". Apoquentado com a explicação, resolvi ir em busca das declarações originais e, em vez de encontrar a palavra inglesa para o nosso luso "aborrecimento", fui dar antes com uma pessoa "beige" e "average". Quer dizer: normal. O que me leva a pensar num erro de interpretação da jovem jornalista que construiu a notícia, para quem, provavelmente "vida aborrecida", será a que está fora do Instagram, ou sem grande combustível para alimentar o Instagram, o que, para os padrões ingleses, talvez seja, por exemplo, não passar fins de semana em Torremolinos ou Albufeira, acordando depois na segunda-feira em Birmingham sem ter bem a consciência de onde se esteve e com quem se dormiu. Houvesse Instagram no tempo dos gregos e no dos seus herdeiros romanos, e a história da Filosofia teria sido diferente.
21 agosto, 2023
SÍLABAS
Desde que o li pela primeira vez, já lá vão muitos anos, que me sinto interpelado pelo §44 de O Crepúsculo dos Ídolos: "A fórmula da minha felicidade: um sim, um não, uma linha recta, uma finalidade...". Deu-me, entretanto, para ir ver como se diz "sim" e "não" em muitas e diversificadas línguas, para concluir que em nenhuma delas tem mais de duas sílabas e quase sempre só uma. Acto contínuo, fui averiguar qual a maior palavra da língua portuguesa. Guardara na memória dos tempos de liceu "anticonstitucionalissimamente" mas (com a Internet a sapiência atinge outros horizontes) afinal é "pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiotico". Se para dizer "sim" ou "não" recorrêssemos a uma palavra com uma grande quantidade de sílabas, o mais certo seria cairmos numa espécie de acrasia. Percebe-se assim como as línguas quiseram ajudar-nos na tomada de decisões, sendo usadas em consonância com os nossos marcadores somáticos. O problema é a exorbitância silábica do pensamento tantas vezes esmagar a pequena e singela sílaba que deseja libertar-se desde a ponta da língua. Talvez isso explique porque Nietzsche não foi propriamente uma pessoa feliz, e nem sequer estou a pensar na doença que haveria de o deitar abaixo de vez.
11 agosto, 2023
DO AVESSO
Optimistas antropológicos louvam a dupla natureza do ser humano enquanto animal racional, o qual foge assim às naturais limitações de um cão ou de um Mr. Spock. Tudo bem, não fossem as demasiadas vezes em que age como um animal quando se pede para ser racional, ou demasiado racionalmente quando seria aconselhável deixar-se levar pelo instinto animal.
10 agosto, 2023
O PRAZER DA INFLUÊNCIA
Elogia-se e incentiva-se, diria que algo romanticamente, uma criativa busca da originalidade, a livre procura de um eu que o distinga de todos os outros eus, um eu irredutível e irrepetível, um eu iluminado por uma essência quase platónica. E não falta quem deixe os seus créditos por mãos alheias. Assumindo desde já algumas excepções, e por isso historicamente imortalizadas, outro deve ser o caminho: escolher os modelos certos para imitar. Sendo boa a imitação, poder-se-á então dormir descansado sobre uma confortável almofada antes de enfrentar os diários palcos em que nos movimentamos. Saber viver não é aprender a criar para depois ansiosamente desejar a exposição, mas aprender a copiar o que se teria exposto, caso se tivesse nascido para ser uma excepção. Um bom modelo não faz um bom copista mas é preciso começar por algum lado, se possível, uma cópia que faça jus ao original.
31 julho, 2023
A PORTA ESTREITA
Resolvi ver um telejornal, o que há muito não fazia, e logo me arrependi pelo ruído que fazia. Façamos então o seguinte: se houver alguma coisa de especialmente interessante no mundo, avisem-me. Mas nada menos que assuntos como foram a queda do Império Romano, o fim da viagem de circum-navegação, o Terramoto de 1755 ou a Revolução Francesa. Ou seja, nada menos que coisas como a descoberta da Atlântida enquanto consequência da ebulição global, o Arouca ser campeão, uma nova religião fundada por um robot com arroubos místicos devido a um defeito de fabrico e cujo evangelho foi escrito pelo ChatGPT, o fim do capitalismo, a CP conseguir estar um mês inteiro sem uma greve, um novo livro de Houellebecq no qual o sexo esteja completamente ausente, a reposição da monarquia em Portugal, que passou a fazer parte de uma União Ibérica com uma Espanha que entretanto se tornou uma república, a descoberta de um cabelo de Bach, tornando possível um clone seu, a criação laboratorial de um tipo de açúcar que, em vez de engordar, emagrece, Elvis Presley ter desta vez aparecido mesmo, tanto podendo ser no deserto do Arizona, de guitarra nos braços e olhar ausente a tocar músicas do Ry Cooder ou, o que vai dar quase no mesmo, numa tabacaria de Moscavide a comprar uma raspadinha, finalmente, e apesar da sua absoluta inverosimilhança, a escolha do novo aeroporto ainda antes do fim do mundo, o qual, porém, não seria novidade por já ser esperado pelos primeiros cristãos, o mais excitante que havia para esperar num tempo em que ainda não havia aeroportos e nem sequer trotinetas. Menos que isso, deixem-me então sossegadinho com as minhas irrelevâncias que, não servindo para abrir ou fechar telejornais, abrem-me a porta para me fechar num mundo de silêncio que inclui ouvir música e outras inutilidades afins que libertam a bela alma dos ruídos e manchas gordurosas do mundo dos telejornais que, consta por aí, é o mundo real, mas onde não quero viver.
30 julho, 2023
PÃOZINHO SEM SAL
29 julho, 2023
PEQUENO MANUSCRITO ECONÓMICO-FILOSÓFICO DE 2023
Karl Marx, apesar de grande leitor do bardo inglês, era um triste optimista que sonhava com uma sociedade em que depois de um dia a trabalhar na fábrica o operário vai para casa sentar-se a ler Shakespeare. Já eu, modestíssimo leitor do bardo inglês, não passo de um alegre pessimista que imagina o pesadelo que será para quem deseja sentar-se a ler Shakespeare, ter suportar um dia a trabalhar na fábrica. Ainda bem que Shakespeare não trabalhava numa fábrica e, já agora, Karl Marx, que passava os dias na British Library, belo lugar para imaginar uma sociedade em que depois de um dia a trabalhar na fábrica o operário vai para casa ler Shakespeare ou, digo eu, para a British Library ler as obras completas de Karl Marx.
28 julho, 2023
O PROBLEMA DA HABITAÇÃO
27 julho, 2023
O NOME DA ROSA E DE TODAS AS OUTRAS
Descobri há tempos o agapanto que, a par das hortênsias e jarros, logo passou a ser uma das minhas flores preferidas. Desde então passei a ver o que não via, ou que ainda não descobrira por estarem cobertos com a ignorância do seu nome: agapantos por toda a parte, incluindo perto de casa e pelos quais passo todos os dias. Ainda agora andei a rever umas fotografias que tirei há quinze anos e em duas aparecem agapantos que me impressionaram pelo seu belo efeito num belo jardim, mas sem os ver como agora vejo quando olho para eles. Daí um nome, apesar de ser uma simples forma sem conteúdo físico ou sensível, ser bastante mais do que uma etiqueta que nomeia um objecto. É uma etiqueta que nos faz apropriar da coisa por ela nomeada, assim como saber de cor um poema. Sabê-lo de cor pode não significar nada, assim como se pode decorar o Teorema de Pitágoras sem o perceber. Mas amar um poema e, ao mesmo tempo, sabê-lo de cor, é fazer entrar o poema dentro de nós, ou, como dizem franceses e ingleses, fazê-lo entrar no coração. Passa-se o mesmo com a visão. Se o nome precisa da sensibilidade para não ficar reduzido a uma simples forma vazia, é essa mesma forma vazia que permite à sensibilidade evitar a cegueira diante das coisas. Entre os agapantos da Kenwood House e os agapantos de Serralves, aconteceu o mesmo que a Ulisses, cujo pai lhe ensinou o nome das árvores, no meu caso, ter aprendido o nome do agapanto. Daí os agapantos de Serralves já não serem os mesmos da Kenwood House pois a pessoa que viu os segundos já não é a mesma que viu os primeiros.
26 julho, 2023
GREGUERÍA
Felizmente não me chamo John, algum filho de americanos ou ingleses que tivessem vindo para Portugal. Sendo dado a desvarios quixotescos e obcecado que ando a contar os passos no telefone, ainda o cérebro me secaria com a ideia de vir a ser escritor.
25 julho, 2023
INAUDÍVEIS PENSAMENTOS
Faria algum sentido uma pessoa ter os Beatles como sua banda preferida, considerando Helter Skelter a sua canção eleita, em vez de Let It Be, Strawberry Fields, Penny Lane ou Hey Jude? Absolutamente nenhum, bastando, para o perceber, ouvir a discografia da banda. Se for Helter Skelter a canção preferida, não podem ser os Beatles, se forem os Beatles, não pode ser Helter Skelter. É este tipo de absurdo que também ocorre muitas vezes no campo das ideias. Pudéssemos ouvir os pensamentos como ouvimos música, e logo o perceberíamos. Não podendo, tais pensamentos vagos, indefinidos ou mesmo obscuros, continuam a esvoaçar livremente na nossa mente sem nunca chegarmos a percebê-los.
24 julho, 2023
SEM VERGONHA
Poderia ser uma daquelas comédias de enganos ao jeito do Parque Mayer. Tratando-se de um filme de Fassbinder, A Roleta Chinesa, a hilaridade da cena levar-nos-á para outros caminhos. Marido e mulher despedem-se de manhã, indo cada um deles viajar para uma cidade diferente. Ele sai primeiro, apanhando o avião para Oslo, depois será a vez dela para Milão. Horas depois, reencontram-se na sua casa de campo para a qual se dirigiram com os respectivos amantes. O preciso momento em que o marido e a amante entram no quarto em cujo chão já está deitada a mulher com o amante, é de grande tensão. Mas, de repente, pela natureza cómica da situação, o marido começa a rir, e logo de seguida estão os quatro a rir, mas rir mesmo a valer como quatro crianças que acabassem de ver alguém a escorregar numa casca de banana. Ora, isto não aconteceria se cada um deles chegasse sozinho, encontrando o outro com o respectivo amante pois, neste caso, enquanto um via, o outro seria visto, um julgaria (o juiz) e o outro sentiria a culpa (o réu), um sentiria ressentimento e o outro vergonha. Não sendo esse o caso, podem todos rir à vontade, pois todos os olhos vêem o mesmo através de um jogo de espelhos em que cada um se vê a si próprio no outro, ou o outro em si próprio, fazendo com que todos se sintam redimidos da sua culpa. Se todos são culpados, ninguém é culpado, e por isso ninguém tem que sentir vergonha. Daí irem todos jantar à volta da mesma mesa levados por uma pureza e inocência adâmica que dispensa cobrir a alma com uma parra. Tratando-se de uma cena de um realizador tão político como é Fassbinder, sugiro então a ideia de, infelizmente, isto ser sobre bem mais do que um caricato fait-divers conjugal.
23 julho, 2023
CIRCENSE
Na sequência das notícias sobre a Altice, por curiosidade, fui ver o que é um Bugatti Chiron Sport, quer dizer, um carro que custa 2,65 milhões de euros. Se calhasse ir parar à minha garagem um destes carros, saído numa rifa, ver-me-ia depois com ele na rua com o mesmo tipo de embaraço e vergonha que sentiria se saísse vestido e maquilhado de palhaço, carregando o peso de todos os olhares sobre mim. Creio que em relação a esta segunda situação iria ser seguido por toda a humanidade, incluindo os palhaços propriamente ditos que só se vestem e maquilham de palhaço para trabalhar. Mas talvez já não se passe o mesmo com o carro. Não é pequena conquista dessa mesma humanidade ter, ao longo dos séculos, conseguido transformar o que é passível de embaraço, vergonha ou mesmo opróbrio, num sinal de sucesso, honra, orgulho e, não menos importante, ou talvez mesmo por isso, alvo de inveja.
22 julho, 2023
O SUSTO
21 julho, 2023
NOITE
Quando acordo às três ou quatro da manhã e passado um bocado oiço o suave ruído de um carro que passa devagar na rua, tal situação logo ganha um sentido ficcional e de mistério, pressentindo-se uma cena própria de um filme policial ou uma qualquer trama dramática. Acontece-me o mesmo no campo quando, no profundo silêncio de uma noite de Verão, ouço, muito ao longe, o ténue som de um cão a ladrar, como se vindo de um outro nível de realidade. Ficção e mistério que tanto na versão urbana como na versão campestre logo se desvanecem com a alvorada, como a luz de um candeeiro que fica acesa de dia sem ninguém dar por ela. Continua tudo na mesma, os carros a passar e os cães a ladrar, o que não continua é a escuridão e o silêncio da noite que nos fazem, se bem que acordados, mergulhar na escuridão e silêncio de nós mesmos.
20 julho, 2023
SUBTRACÇÃO
Durante quase toda a sua existência, a escultura foi subtractiva. Como dizia Miguel Ângelo, é pegar num bloco de pedra e tirar de lá o que está a mais. Hoje, pelo contrário, é essencialmente aditiva, pois o que faz é sobretudo acrescentar materiais. Já na vida deverá ser o oposto. É desejável que comece por ser fervorosamente aditiva, fazendo, desde essa pré-história que é a nossa infância, aumentar, acumular, juntar, conjugar coisas diferentes. Mas, depois, a partir de dada altura, tornar-se subtrativa: como Miguel Ângelo, pegar num escopo e martelo para reduzir ao essencial o bloco de pedra diante de nós.
19 julho, 2023
INTRODUÇÃO AO CEPTICISMO
18 julho, 2023
BLACK SABBATH
Passeio das Virtudes, fim de tarde de sábado. Esplanadas cheias, relvado em frente salpicado de pessoas que conversam, lêem, piquenicam com todos os preceitos; há uma mulher que tricota, crianças brincam descalças, uma outra faz um desenho ao lado da mãe que conversa com uma amiga, dois rapazes jogam xadrez, e ainda quem vai passando para contemplar a vista sobre o rio, enquanto os pássaros expandem a sua alegria entre as árvores cuja disposição possibilita diferentes matizes de luz e de sombras. Uma pessoa está ali e vê-se perfeitamente dentro de um quadro naturalista, impressionista ou pós-impressionista numa das paredes do tão próximo Soares dos Reis. Mas estando ali, por um punhado de euros, um rapaz que tomou a liberdade de ligar uma guitarra a uma coluna da qual são evacuadas descargas eléctricas de Voodoo Child, Paranoid, e outras tonitruâncias afins que alastram pelo jardim como gás sonoro que entorpece todos os sentidos, logo me sinto parte, apesar da longa distância, de uma instalação ou happening em Serralves.
17 julho, 2023
ÍTACAS
Não é por interromper o conhecimento de novas ilhas e seus habitantes que a morte é triste e cruel, pois não se pode amar o que nunca se conheceu. Triste e cruel, por interromper o retorno às mesmas ilhas de sempre, o qual, ao contrário de nós, tinha tudo para ser eterno.
16 julho, 2023
PONTARIA
A virtude pode estar no meio, mas é nas pontas que se procuram os grandes prazeres e benefícios. Explica-se assim, não sei dizer se de modo pessimista ou optimista, a grande pontaria para acertar nas pontas em vez do alvo, apesar de mesmo ali à frente.
15 julho, 2023
O MEIO E O TERMO
Quanto mais no meio estiver a virtude, mais o meio para lá chegar a conduz ao seu termo.
14 julho, 2023
SOLIPSISMO
Como pode alguém dizer "Se eu estivesse no lugar dele, faria isto ou aquilo"? Estivesse no lugar dele e diria "Estivesse no lugar dele e faria com que me dissesse isto ou aquilo".
13 julho, 2023
SAKÉ E O RESTO
- Se odeias tanto a tua vida, porque não desapareces de uma vez?
- Porque morto não poderia beber.
Diálogo extraído do O Gosto do Saké, de Yasujiro Ozu, filme sobre o qual alguém disse que se bebe mais do que em todo o cinema de Cassavetes. Substitua-se a bebida por o que a cada um der mais jeito, e matéria-prima não falta, e logo a resposta adquire um pendor mais universal.
12 julho, 2023
CONVERSA SAGRADA
Por mero acaso, como de resto quase tudo na vida, vi uma extraordinária exposição de Paris Bordon, pintor que não conhecia, sendo também por ele que conheci um tema igualmente explorado por outros pintores da mesma época: a sacra conversazione. Tema que representa a virgem e o menino rodeados de santos e, nalguns casos, a pessoa que faz a encomenda, que aqui surge no lado esquerdo do quadro, com a curiosa peculiaridade de estarem todos calados. Grande foi o deleite visual pelas várias sacra conversazione ali expostas, mas também não menor foi o entusiasmo por descobrir um tema que vem ao encontro de uma ideia que há muito descobri no profaníssimo mundo em que vivo: é em silêncio que se têm as mais sagradas conversas.
11 julho, 2023
NATIONAL GEOGRAPHIC
Mães há que, quando sou professor dos filhos, são escancarados sorrisos, exuberantes acenos, nalguns casos até despropositadas atenções que preferia não receber. Disposições que logo se dissipam quando deixo de ser professor deles, não havendo sequer saldo para um formal cumprimento ou um amarelado sorriso. Pelo que vou ouvindo entre os meus pares, parece mais normal do que se esperaria. E sempre as mães, nunca os pais. O que não deixa de ser comovente pelo seu lado tão ingenuamente animal. Sendo a mãe que gera o aluno, sendo a mãe que dá à luz o aluno, sendo a mãe que amamenta o aluno, é pois da mãe que depende mais a sobrevivência e desenvolvimento do aluno, ainda que este já beba mais cerveja do que leite e se incline para outros peitos. É por isso normal que, de acordo com os mais elementares preceitos naturais, depois de incubadora, fique incumbente de zelar pela protecção da cria. Ultrapassada que foi mais uma pequena ameaça, há que continuar a ser eficaz, concentrando todas as energias nas ameaças que se seguem.
10 julho, 2023
SEM ÓCULOS
Ainda não cheguei à fase crítica de saber por experiência própria que, como diz uma personagem de Philip Roth, a velhice não é uma batalha, mas um massacre. Acontece que os ossos, talvez carentes, fazem imensa questão de me lembrar que existem, o sono desvaira, os pés arrefecem, a memória trai-me, o ouvido faz-me passar por situações ridículas, a digestão é encarada com reverência. Mas é reconfortante haver filmes que me fazem perceber que, apesar da idade adiantada e das limitações oftalmológicas que lhe são inerentes, os olhos que os descobrem continuam a ser os mesmos incipientes e deslumbrados olhos que na infância e juventude descobriram outros. Filmes que serão sempre um precioso pretexto para continuar a ter vontade de os abrir de manhã até que um dia se fechem de vez.
09 julho, 2023
RAMADA PODRE
As pessoas podem estar a barafustar, gritar, esbravejar umas com as outras. Mas se chega a horrenda figura da morte para levar uma delas, as outras remetem-se ao silêncio. Quer dizer: acabou o jogo. Graceja-se com o facto de quando uma pessoa morre serem só elogios. Não vejo problema nisso, caso não se trate de uma figura sinistra e conhecida pela sua relação com o mal. Morreu, desapareceu, partiu, merece pois silêncio ou respeito. Não por acaso que desde a pré-história se dá um tratamento especial a quem deixou o mundo dos vivos. Por isso só talvez o campo da psiquiatria possa explicar o texto de Diogo Ramada Curto, no PÚBLICO de hoje, sobre José Mattoso, com o corpo deste ainda por arrefecer. Muito bem, assume que deseja evitar a "rememoração romântica" de saber quem foi o maior dos historiadores, e tem esse direito. Mas tenha ou não razão em matéria de factos, é absolutamente lamentável o modo acintoso como ridiculariza e achincalha um homem conhecido pela sua modéstia, delicadeza, bonomia, gerador de consensos mesmo entre pessoas tão distantes como Rui Ramos e Rui Tavares, Maria de Fátima Bonifácio e Silvestre Lacerda. A morte torna-nos iguais, e o mesmo deve acontecer na reacção à morte. Irromper no meio do elogio fúnebre com a mesquinha e malcriada cultura das redes sociais, não passa de uma soez aproximação à fronteira da abjecção.
08 julho, 2023
O ANTI-PIGMALIÃO
07 julho, 2023
COSMOGONIA DOMÉSTICA
No campeonato das criações do mundo, não me é difícil imaginar o gozo que deve ter dado ao Deus bíblico criar o mundo ex-nihilo. Ainda assim, ficaria a perder face a uma cosmogonia grega. Sei isso pela minha experiência de casas. É muito bom e desafiante entrar numa casa vazia e, como Deus, dedicar vários dias a fazer dela um lar. Mas muito maior é o prazer que sinto quando, por distracção ou excesso de outras ocupações, deixo-a chegar a um considerável estado de desordem, para, depois, enchendo-me de coragem, pôr mãos à obra e ver desse relativo caos emergir um luminoso cosmos. E sentar-me depois no sofá a olhar à minha volta como se nunca dele tivesse saído.
06 julho, 2023
NATIONAL GEOGRAPHIC
O que torna uma pessoa interessante é, basicamente, ser uma pessoa interessada, podendo isso revelar uma atitude interesseira por chamar a atenção de pessoas interessadas em pessoas interessantes.
05 julho, 2023
ENERGIAS ALTERNATIVAS
Tinha acabado de passar pelas casas onde Nietzsche vivera em Basileia quando, ao descer uma bonita rua a caminho da Baixa, pressinto um espectro sonoro que se vai avolumando até dar com uma enorme alcateia a vociferar cânticos marciais, uma compacta massa cujos uivos ribombavam pelas antigas pedras da cidade. Percebo então que vinham de Nice, estando ali por causa de um jogo para a Liga Conferência. Convém lembrar que Nice e Basileia nada são na Europa do futebol e que tal Liga vale uma minhoca. Porém, caminhavam e ululavam com triunfal júbilo como um exército napoleónico a caminho de Austerlitz. No seu segundo livro, Humano, Demasiado Humano, que coincidiu com o período em que morava umas ruas acima, embora escrito no Sorrento durante uma pausa, diz o jovem professor de Filologia Clássica que a guerra está tão vitalmente entranhada na nossa natureza, que quando os romanos se cansaram dela tiveram que se dedicar a batidas dos animais, combates de gladiadores e a perseguir cristãos, ou os ingleses a perigosas viagens de exploração, travessias e escaladas com fins científicos. Mas, no fundo, tudo energia do mesmo saco. Fosse escrito hoje e outros exemplos não faltariam. À noite, por graça, liguei a televisão para espreitar o jogo. Adormeci.
04 julho, 2023
MRS. JARLEY
A pequena Nell dorme perto de Mrs. Jarley na caravana desta, na qual percorre lugarejos de Inglaterra a exibir as suas figuras de cera. Isto acontece em A Loja de Antiguidades, de Dickens. De manhã, Nell ouve Mrs. Jarley lamentar o facto de dormir mal, vítima de insónias. Lamentação que Nell não entende pois ouviu-a ressonar toda a noite, presumindo assim que, em vez de insónias, sonhou estar com insónias. No que à consequência diz respeito, tanto faz ser realidade ou imaginação, acordando ambas as vítimas com iguais lamentações e mais que legítimas razões para as sentir. Porém, na substância, são implacavelmente distintas. Mudando o que há para mudar, ocorre-me pensar que vivo rodeado de pessoas como Mrs. Jarley.
03 julho, 2023
O PEQUENO MUNDO
Não sei distinguir um dó de um ré e morrerei sem chegar a saber o que é um fá sustenido. Mas isso não me impede de gostar de música e de me sentar no sofá a ouvi-la ou ir a um concerto. Daí não aceitar a visão dos que criticam os turistas por invadirem as mais belas cidades europeias sem nada saberem da sua cultura. Pobres elites, fechadas no seu mundo, sem subtileza para compreenderem a diferença entre uma selfie num McDonald's de Roma e uma selfie num McDonald's de Sacavém.
02 julho, 2023
RECIPROCIDADE
Para maior protecção dos inocentes e aumentar a segurança dos fiéis, os catequistas vão ter de apresentar o registo criminal. Não é uma louvável notícia para eles, mas também não melhor para muitos criminosos, para quem ficará mais difícil ocultar ou dissimular a sua identidade com um certificado de catequista ou padre.
01 julho, 2023
FLORES
30 junho, 2023
SONATAS PARA CORDAS VOCAIS SOLO
29 junho, 2023
DOCE SINESTESIA
Será deveras primário, e certamente resultado da minha primária natureza. Mas não consigo vislumbrar nada mais próximo do contacto entre a música de Vivaldi e o meu ouvido, do que o contacto entre certos doces conventuais e a minha boca.
28 junho, 2023
A PIPA FURADA
Como as crianças que, na noite de Natal, acabam de abrir um embrulho e já estão a olhar avidamente para outro, consta que, ao festejarem o título, muitos benfiquistas já pediam o próximo. O que nos leva à engraçada imagem da pipa furada, sugerida por Platão para criticar a submissão da alma a insaciáveis desejos. Pode-se contrapor, em defesa da pipa furada, que, sendo bom desejar, e sendo o desejo anulado pela sua satisfação, parece razoável andar sempre atrás dele como o burro com a cenoura pendurada na cabeça para o fazer andar. Isto, claro, para quem acredite que é sempre melhor andar do que estar parado. Mas também é verdade que, podendo a esperança alimentar o desejo, viver de esperar é uma terra de ninguém entre um passado que já não existe e um futuro que ainda não existe. E mesmo que a esperança seja a última coisa a morrer, pode dar-se o caso de a pessoa já estar morta, só que, tão distraída que anda com a esperança, ainda não deu por isso.
27 junho, 2023
SERENIDADE
Invoca-se Ícaro pelo seu excesso de ambição. Mas olhando para o quadro que Bruegel dedicou ao assunto somos levados a lembrar o que lhe diz o pai, Dédalo, tal como nos conta Ovídio, nas Metamorfoses: "Voa a meia altura, Ícaro, recomendo-te, para que, se fores demasiado baixo, o mar não pese nas penas, e, demasiado alto, não as queimes no fogo". Mas não é Ícaro que sobretudo se vê no quadro. Antes um sereno agricultor a trabalhar a terra com o seu sereno cavalo, um sereno pastor que guarda um sereno rebanho, acompanhado de um sereno cão, barcos que navegam num mar tranquilo. E, tudo isto, num não menos tranquilo fim de tarde, como se percebe pelo Sol que se vai despedindo, formando todas estas partes um todo harmonioso. E Ícaro, o grande protagonista? Mal o vemos, reduzido que está à sua insignificância enquanto luta pela sobrevivência, bem perto de um pescador sentado. Em dia de exame de Filosofia, lembro John Stuart Mill, que dizia que mais vale ser um Sócrates insatisfeito do que um porco satisfeito. Diria agora, noutro contexto, que mais vale ser um cavalo, ovelha ou cão satisfeitos do que um milionário insatisfeito.
26 junho, 2023
FESTAS E FESTAROLAS
23 junho, 2023
22 junho, 2023
A ALIANÇA
Quando Frank Sinatra veio cantar ao antigo estádio das Antas, saindo do camarim para o palco pergunta a um membro do staff em que cidade estava, talvez para gritar alegremente "Good evening, Oporto!". Já sei que sempre que voltar a ler alguma coisa sobre o Reid's, no Funchal, como aconteceu há dias, virá à baila terem lá passado a princesa Sissi, Winston Churchill ou Gregory Peck. O que que também me faz lembrar aqueles restaurantes, diga-se que não apenas na província, em que um dia por lá passou uma figura conhecida e o dono aproveita para afixar na parede uma fotografia ao seu lado para que todos os comensais saibam que também lá esteve. As alianças, como a mais antiga diplomática do mundo, que tanto gostamos de invocar com indisfarçável orgulho cosmopolita, entre Portugal e Inglaterra, ao contrário das que se colocam nos dedos, não têm de ser redondas.
21 junho, 2023
DEPOIS DAS 5
É impressionante como, para determinar a identidade de uma pessoa, seja a própria ou a dos outros, se continua a dar tanta importância ao que se faz entre "as nove e as cinco". Conhece-se alguém e a primeira coisa que se deseja saber é o que "faz". Os pais sabem que a filha ou o filho namora, e a primeira pergunta é fatal como o destino: "E o que é que faz?". Ficando-se depois imensamente esclarecido por se saber que trabalha num banco, ou no departamento de águas da câmara de Loulé, que tem uma loja de roupa, ou que é engenheiro, professora ou médica. E mesmo assim pode não chegar: "Ah, professora, e professora de quê?". "Médica, ai é? E qual a especialidade? Dermatologista. Ah, ok". E se é engenheiro, lá se vai escarafunchar para saber se é civil, químico, electrónico ou informático. Mas para que raio interessa saber tudo isso? Quando o bancário entra no banco é para fazer o que se espera de todos os bancários, quando a professora entra na sala de aula é para fazer o que se espera que faça um professor, e a dermatologista analisa os sinais no corpo por ser isso que deve fazer qualquer dermatologista. E isso não define uma pessoa, define uma profissão. O que deve então importar se queremos mesmo saber quem é verdadeiramente uma pessoa? É o que faz quando não é obrigada a fazer o que faz. Para usar jargão existencialista, quando, depois das 5, se descobre condenado a ser livre para o que bem lhe apetecer. Livre, completamente livre, e por isso também responsável pelo que faz com essa liberdade, o que, diga-se, em abono da verdade, pode também significar um enormíssimo problema.
20 junho, 2023
SIM
19 junho, 2023
AQUILES E A TARTARUGA
Gente mais velha costuma dizer, com laivos de sapiência, que seria bom voltar a ser jovem mas com o que sabem agora. O que não passa de uma melancólica ilusão. É verdade que confiamos mais no que sabemos hoje por oposição ao que não sabíamos antes. Mas também o que sabemos hoje pode vir a ser confrontado no futuro com o que iremos passar a saber, o que poderia levar-nos a agir de modo diferente se o soubéssemos. Se tivéssemos idades bíblicas, chegados aos 200 anos, iríamos descobrir como fomos ingénuos aos 150, e se chegássemos aos 600, como fomos ingénuos aos 500. Quanto mais se vive mais tempo há para saber o que não se sabia. Os erros, velozes, correm sempre à nossa frente e nós, pobres tartarugas, não temos outro remédio senão andar lentamente atrás deles.
16 junho, 2023
AO CORRER DO TEMPO*
Foi muito estranho, nos anos 70, aparecer um cinema chamado Quarteto, cujas salas eram bastante reduzidas quando comparadas com as outras, e nem sequer estou a pensar na sublimidade do Cinemascope. Não menos estranho foi, muitos anos depois, começar a dar com pessoas, em comboios e aviões, a ver filmes em tablets e telefones tirados da mochila e do bolso. Não faltará muito para o dia em que ninguém irá estranhar já não se verem filmes. Nunca, como hoje, foi tão fácil ver filmes, mas também não menos fácil não os ver.
*Filme de Wim Wenders que vi no Quarteto e agora revi no meu computador [Filmin].
15 junho, 2023
O BARRIL
Ia a caminho da escola embalado pelo alegre chilrear dos passarinhos, àquela hora ainda não demasiado conspurcado pelos carros, jubilando com o fresco da manhã que tão bem acentua o aroma das tílias que perfuma a rua àquela hora. Entretanto, pára ao meu lado um daqueles Bucéfalos que fará corar de inveja os Mercedes, Audis ou BMW que tanta alegria dão aos portugueses, e abre-se um vidro para lá de dentro sair o enorme sorriso de uma antiga aluna e a boa disposição que sempre lhe conheci. Após um diálogo quase tão breve como a anedota de Diógenes e Alexandre, mas, ao invés, animado pela alegria do encontro e da nostalgia, seguiu cada um o seu caminho. Um cínico observador externo, apreciando a cena, poderia dizer que cada um tem o que merece. Eu e ela, em uníssono, diríamos antes que cada um tem o que faz por merecer.
14 junho, 2023
ANALÍTICA TRANSCENDENTAL
13 junho, 2023
O FAROL
Em virtude da mistura entre uma puritana sanha sanitária e uma entusiasmada obsessão por cancelar (um eufemismo para censurar), não me surpreende que, num destes dias, o poema Tabacaria passe a chamar-se O Quiosque; que em vez de ser instada a comer chocolate, a menina seja persuadida a comer iogurte magro, que é a que ficou quase reduzido o bar da escola onde trabalho, como se estivesse ela numa aula de Ciências da Natureza ouvindo os sábios ensinamentos da professora que se licenciou numa universidade e sabe pois muito bem o que ensina; e atendendo ainda ao entusiasmo que por aí medra com tudo o que seja positivo e empreendedor, passem antes a singrar os versos "Sou tudo/Serei sempre tudo/Só posso querer ser tudo/Porque tenho todos os sonhos do mundo". Ora, se o nosso tempo começou muito bem com as Luzes do século XVIII, hoje, com o culto do light, estamos como um barco que, na noite escura, é atraído pela luz do farol, como o mosquito pela lâmpada no tecto da sala.
12 junho, 2023
RISO E SISO
Já todos assistimos: conta-se uma anedota e, no meio dos risos e gargalhadas, haver alguém que não a percebeu, o que leva à misericordiosa missão de explicar a razão de ser da piada. Conheço bem o processo mental, tanto de quem explica, como daquele a quem é explicado, por já ter passado por ambas as situações. Quem explica não perde, nem pode perder se quer explicar, a evidência da piada que acabou de contar, mas, ao explicá-la, o seu processo mental não é o mesmo de quando está a contá-la. Sendo esclarecido, também aquele a quem é explicada, irá achar graça, mas também não da mesma maneira de quem riu logo à primeira sem explicação. Eis o que eu sinto quando me pedem para explicar por que gostei de alguma coisa. Até posso explicar, mas faço-o como quem explica uma anedota a quem precisa de ser esclarecido sobre ela. E, do mesmo modo, se aquele a quem explico pode até compreender a razão por que gostei, também não será da mesma maneira de quem gosta sem ter precisado de perceber porque gostou. Diria mesmo que quanto maior for a necessidade de explicar, maior será a evidência de que o outro nada percebeu, chegando-se assim à conclusão de que, como diante de alguém que nunca percebe as anedotas ou se limita a desenhar no rosto um sorriso amarelo, mais vale ficar calado.
11 junho, 2023
DÉBITO E CRÉDITO
Nutro alguma simpatia por uma ética deontológica. A chatice do dever é podermos ter que passar a vida a acordar de manhã e a adormecer à noite com a desagradável sensação de andarmos a dever alguma coisa. Vale a distracção na, como diria um conhecido filósofo alemão, inautenticidade do quotidiano, para nos colocarmos quase sempre no papel de credores.
10 junho, 2023
A ÉPICA E A LÍRICA
Esta capa tem quase um mês e deve-se ao Manchester City ter eliminado o Real Madrid com o contributo de um português, facto que só por si justifica o nosso pátrio orgulho. Mas há ainda a cereja em cima do bolo: na final, em Istambul, entre uma equipa inglesa e uma equipa italiana, esse mesmo português entrar em campo, não no dia de Inglaterra, não no dia de Itália, não no dia da Turquia, também não no dia da Polónia, que é de onde vem o árbitro, mas dia de Portugal. Eu poderia ver nesta capa um manifesto ainda marcado pelo Ultimatum Inglês. Humilharam-nos? Pois é, mas agora precisaram de um português para ajudar a eliminar o Real Madrid e irão tê-lo a jogar para dar cabo dos italianos no dia de Camões. E isto, sabendo nós da importância de Camões na revolta face ao Ultimatum, em cuja estátua estava prevista a deposição de uma coroa de flores. Mas não vou por aí, agora que somos quase tanto adeptos do Manchester City ou do Manchester United, como do Benfica ou do Sporting, sobretudo desde que lá joga quem fala a mesma língua do vate. O que vejo aqui, pensando no que fomos quando levados por heróis epicamente cantados pelo poeta, que fizeram da imensa Terra uma esfera dominada, é um patriótico lirismo que canta o domínio do esférico por um médio lusitano. Hoje, dia 10 de Junho, em Istambul, muito mais do que uma final, vai estar em jogo a honra e o orgulho de um povo nos pés de um Silva. E estamos reduzidos a isto.
09 junho, 2023
A COZINHA
A minha cozinha é toda branca, facto em relação ao qual tenho um sentimento contraditório: agrado, por ser visível a mais pequena sujidade, mas também desagrado por ser visível a mais pequena sujidade. Passa-se o mesmo com a psicologia da vida quotidiana, dando origem a vários padrões: duas minorias, uma sempre de pano na mão a lavar e outra que nada lava, e uma esmagadora maioria que se esforça para lavar o principal, mas que tudo faz para no no dia-a-dia conseguir não ver as manchas mais pequenas.
08 junho, 2023
TEOLOGIA DANONE
Gosto muito de feriados, pois se é verdade que não desgosto de trabalhar, gosto ainda mais de não trabalhar. Mas qual o sentido de comemorar o corpo de Deus num tempo em que foi o corpo a transformar-se em Deus e a tornar-se digno dos mais elevados sacramentos?
07 junho, 2023
3, 2, 1, ACÇÃO
«No princípio era a acção» Fausto
Como não haveria a humanidade de preferir um excitante filme de acção, ou as não menos excitantes intrigas de uma telenovela, a três horas de Jeanne Dielman, ou haveria de trocar uma revista social pelas revistas literárias deste mundo, se uma das obras fundadoras da cultura ocidental começa com uma birra de Aquiles por causa de uma rapariga e, depois, é pancadaria do princípio ao fim?
06 junho, 2023
O PASSADO PRESENTE
05 junho, 2023
GOYESCA
Acabámos de descobrir que vivemos na era da pós-verdade. Parece que passamos a vida a fazer grandes descobertas e a banharmo-nos pela primeira vez nas águas de um rio que nunca é o mesmo. Ou não será antes uma forma de darmos nomes diferentes às coisas? Em que era se vivia quando alegremente se dizia que era preferível estar errado com Sartre do que ter razão com Aron? Ou quando milhares de comunistas tudo faziam para acreditar nas verdades do Partido a respeito do estalinismo, maoísmo, pol-potismo, brejnevismo, ceausescismo, hoshismo, jaruselkismo ou honeckerismo? Ou só é pós-verdade porque agora se trata de Trump ou Bolsonaro? Nietzsche, na Gaia Ciência, estamos a falar do século XIX, lembra que a consciência é a evolução última e mais tardia da vida orgânica, sendo por isso frágil e incompleta, excelente incubadora de falsos juízos, cuja base não é a verdade, mas o que se deseja acreditar. O pior cego não é o que não quer ver. Este será mesmo o melhor de todos ao conseguir, com grande sucesso, o seu mais anelante propósito, que é não ver. Deixando assim a sua consciência bem encostadinha à almofada para um sono bem repousado. E quem não se pela por um sono bem repousado?
04 junho, 2023
RATOS E HOMENS
Mais um filme depois de ler o livro, mais uma tremenda desilusão. O que me leva a questionar se para gostar muito de um filme será condição necessária não se basear num livro ou não o ter lido. O que poderia ter acontecido com este que, verdade seja dita, até nem é mau: boa realização, boa fotografia, boa direcção de actores, bons cenários e nada mal concebido como filme de época. Mas poucos minutos depois já estava a deitá-lo pelos olhos, tirando uma certa curiosidade (nada mórbida) para ver como foram escolhidos rostos e lugares. E quanto melhor é o livro, e este é muito bom, mais insuportável se torna o filme. É injusto? Admito, mas não há volta a dar. Vejo os actores e só me lembro dos ratinhos de Skinner ou Laborit: ver pessoas a andarem de um lado para o outro enquanto vão dizendo coisas umas às outras.
03 junho, 2023
A VOZ DA CONSCIÊNCIA
Acontece comigo, e creio que com quase toda a gente: uma sensação de estranheza e desconforto sempre que ouvimos a nossa voz gravada. Tal acontece por usarmos os nossos ouvidos como se fossem os ouvidos de outra pessoa, ouvindo a nossa voz a partir de fora em vez de abafada cá dentro. Não só por estarmos mais envolvidos na consciência do que dizemos do que no som que emitimos, mas também porque uma percepção interna da voz é diferente da sua percepção exterior. Porque razão não acontece o mesmo na introspecção se o processo, dividirmo-nos em sujeito e objecto sem deixarmos de ser os mesmos, é idêntico? Porque, ao contrário do que se diz, a consciência não tem voz. Estivesse ela dotada de cordas vocais, e o mais certo seria também uma sensação de estranheza e desconforto por estarmos a ouvi-la.
02 junho, 2023
SORRISOS DE UMA MANHÃ DE PRIMAVERA
Numa das minhas turmas já dei hoje a última aula. Após dois anos de Filosofia quis saber qual foi o impacto da disciplina. Um dos alunos, um muito bem disposto e descontraído rapaz, chamemos-lhe, só por graça, Esteves, assumiu com um, creio que orgulhoso, sorriso, que nada aprendeu de interessante e que não percebe para que serve uma disciplina como Filosofia. Olhei para ele e lembrei-me de Frid, o simpático, alegre e feliz criado de Sorrisos de uma Noite de Verão, um dos meus filmes preferidos de Bergman, ainda que para um bergmanólogo ou bergmanófilo possa ser difícil de aceitar por estar bastante fora do habitual registo que o celebrizou. Ele disse pois aquilo a sorrir, sendo a minha reacção sorrir também. Não um sorriso de orgulho como o dele, mas um sorriso de inveja pela vida feliz daquele rapaz que, e Deus o proteja, irá continuar a ser a mesma quando adulto e quando velho. Não examinar a vida pode não ser condição necessária nem condição suficiente para que valha a pena ser vivida. Mas, ao contrário do que dizia Sócrates, é bem capaz de ajudar.
01 junho, 2023
VANITAS COM CEREJAS
Vários foram já os quilos de cerejas que comi desde que começou a sua época. Ainda há pouco veio mais uma caixa, estando quase a desaparecer. Dizem que as conversas são como as cerejas. Diria antes, pelo modo pouco criterioso como as vou comendo, que as cerejas é que são, não como as minhas conversas, mas como os meus solilóquios sem eira nem beira, e tão levemente digeridas que, apesar da sofreguidão com que as como é quase como se não as comesse. Sofreguidão que não é sem causa, a qual, chegado o Outono, envolve também dióspiros e romãs durante a sua breve passagem pelo mundo: sentir o peso da areia a cair na parte inferior da ampulheta, apressando com isso a procura do prazer e felicidade que nos dão. Daí o cesto de frutas de Caravaggio ser uma das minhas vanitas preferidas. A falta que nos faz uma ampulheta para tudo na vida, que vem e depois vai como as cerejas, os dióspiros e as romãs, só que sem darmos por isso, entretidos que estamos com os nossos afazeres quotidianos.
31 maio, 2023
ALEGORIA DOS CINCO SENTIDOS NA IDADE DO FERRO
Fosse eu pintor e quisesse fazer uma alegoria dos cinco sentidos para esta altura do ano, saberia bem o que lá pôr. O aroma das tílias de manhã cedo ou ao anoitecer, o sabor das cerejas escuras que enchem a tigela de vidro na cozinha, a refúlgida cor dos jacarandás espalhados pela cidade, a temperatura como na Idade do Ouro descrita por Ovídio nas Metamorfoses, o permanente som dos carros que passam no alcatrão. Todas as estações são merecedoras da sua alegoria, cada uma com as suas matérias primas para alimentar os sentidos e que, à excepção do permanente som dos carros que passam no alcatrão, que é também permanente ao longo do ano, vão chegando e partindo com os movimentos da Terra, como os pássaros cuja música fica assim impedida de constar na minha alegoria, sendo relegada para os confins da memória.
30 maio, 2023
BRABEL
Diz frei Bento Domingues, no Público de sábado, que a decisão divina de criar várias línguas durante a construção da torre de Babel serviu para promover a diversidade humana, impedindo assim uma imperialista tendência para a uniformidade promovida pelos mais fortes. Eis uma perspectiva que subverte a clássica ideia de associar esta história a um castigo, e que faz ver a pluralidade linguística como um anátema para a humanidade. Por outro lado, opõe este mito de um Deus preocupado em promover-nos uma vida feliz, ao de Prometeu, em que deuses e homem surgem como rivais, obrigando este a roubar o fogo cuja falta o impede de alcançar essa vida feliz.
Fazendo de um simples Bra, um épico braço de ferro entre homem e deuses, que chega mesmo ao ponto de transformar o numeral árabe em anglo-saxónica proposição, esta loja assume todo um desafio antropológico, conseguindo, de uma assentada, superar a oposição entre os dois mitos. Ao promover o regresso a uma uniformidade pré-babélica, coloca-se expressamente do lado de uma poderosa língua, rejeitando, de modo arrogante e altivo, a vontade divina, o que também faz com que, como no mito grego, se tornem rivais. Não obstante a sua irrelevância, salva-se a partícula copulativa. Quem sabe se um vestígio de culpa, abrindo com isso a possibilidade de um último fôlego de sobrevivência de uma língua para lá do poder avassalador da lingerie à qual se encontra agrilhoada.
28 maio, 2023
CINZAS
Bate tudo certo. Num mundo em que, vivos, as relações caminham cada vez mais no sentido da virtualidade, a cremação passou a ser o nosso destino natural depois de mortos. Quando as relações eram físicas, era também um corpo físico que descia à cova para lá eternamente repousar. Quando ainda hoje se vai a um cemitério para visitar uma pessoa que lá desceu inteira para com ela conversar um bocadinho, deixar-lhe umas flores ou limpar-lhe a casa, é ainda de um corpo que se trata. Quando Hamlet vê o coveiro a tirar uma caveira, ocorre-lhe pensar que teve uma língua lá dentro e que pode ter sido a cabeça de um político ou de um cortesão. Diante doutra, que pode ter sido a de um advogado. E perante o crânio de Yorick sente-se legitimado para dizer "Ah, pobre Yorick! Eu conheci-o". Ora, como é possível dizer "Conheci-o", diante de uns gramas de cinza que se esboroam com um ligeiro sopro? Daí, insisto, bater mesmo tudo certo: um ser humano é socialmente cremado ainda em vida para, depois, quando já reduzido a um pacote com cinzas, permitir a reconfortante sensação de que nada mudou e, como Hamlet, toda a gente poder convictamente dizer que o conheceu.
27 maio, 2023
O SOFÁ
Eu gosto do conceito ético-político de decência. Não promete o que não pode dar, mas versátil que baste para confeccionar uma refeição que não serve apenas para matar a fome. Ainda assim é um conceito demasiado sociológico para o meu gosto. E eu sou um romântico que não se satisfaz só com quadros e gráficos relativos ao IDH. Daí que, sem desfazer o conceito de decência, prefira o de conforto. Pelo qual fui visitado enquanto lia no meu sofá, pensando na arte de quem o concebeu para benefício de quem nele haveria de sentar, desviando-me da leitura para me concentrar na sensação física de bem-estar. Física, mas também psicológica. Talvez seja isso que sente o macaquinho de Harlow quando prefere a macaca de veludo à de arame que lhe dá a comida.
Como deverão as pessoas sentir-se perante um Estado no qual vivem como cidadãos e não meros indivíduos num estado de natureza anterior a qualquer ordem política? Não como diante de uma mãe protectora que lhes faz as vontades todas, os mima em demasiado fazendo delas eternas criancinhas mal acostumadas. Mas um Estado que, tal como uma boa mãe, transforme o medo e a angústia em segurança e bem-estar, e não revele mórbida condescendência ao ajudar, tratando os cidadãos como fins e dignos de respeito moral. A língua japonesa possui uma palavra, amae, para exprimir o bem-estar e alegria quando sentirmos que somos aceites, apreciados, desejados, e cujo ideograma original representa um seio com um bebé a mamar. Amae é o que todos os que se sentem pessoas de bem deveriam sentir sempre que o Estado pensa nelas, se lembra delas ou quando elas pensam ou se lembram do Estado. Vivendo e envelhecendo, confortavelmente, numa sociedade decente tal como eu no meu sofá quando nele me sento para ler, sentindo uma matinal brisa fresca a entrar pela porta da varanda.
26 maio, 2023
A VOZ NA CONSCIÊNCIA
Toda a gente que vive nesta zona, e muita fora dela, conhece um popular restaurante chamado Cu da Mula. E muito justamente, já que a comida e o serviço são de qualidade. É tão normal dizer ou ouvir dizer que se foi ou se vai ao Cu da Mula como a qualquer outro restaurante, ouvindo-se o seu nome com o mesmo ar sério de quem o invoca. Mas lembro-me da primeira vez, há muitos anos, em que ouvi falar dele, não ficando indiferente à carga escatológica do nome. Sem dúvida popular num país de restaurantes com nomes tão populares como Sandokan, Trinitá, O Silva, O Zé Manel, Casa das Ratas, Rei dos Frangos, Rei das Bifanas ou Rei dos Leitões (não sei porquê, nunca aparecem rainhas). Mas como Cu da Mula nunca tinha ouvido. Mas, insisto, isso foi há muitos anos, tornando-se hoje tão vulgar e familiar como o nome de qualquer outro restaurante.
Fiquei incumbido de organizar um almoço e um dos comensais sugeriu o Cu da Mula. Telefono para fazer a marcação, e atende uma doce e delicada voz feminina: "Boa tarde, fala do Cu da Mula". E eis que num ápice regresso ao dia em que o ouvi pela primeira vez. Como explicar esta repentina estranheza de um nome, ouvido e dito dezenas de vezes ao longo dos anos? Porque se tratou de uma desconhecida voz feminina, igual a tantas outras que nos atendem de uma companhia de seguros, de um consultório médico ou do SNS 24, só que a dizer "Cu da Mula". Uma voz desconhecida, institucional, de uma pureza quase platónica, de uma inteligibilidade deslocada de qualquer contexto quotidiano e informal. Ouvir num telefone "Ok Teleseguros, fala a Marta" é uma coisa, ouvir "Fala do Cu da Mula", uma outra, obrigando-me a perceber a sua verdadeira natureza escatológica, grosseira e deselegante. Eu seria incapaz de dizer a certas pessoas que fui ao Cu da Mula, ou pediria desculpa ao dizê-lo, explicando que não poderia dizê-lo de outra maneira. O que também mostra, e era aqui que pretendia chegar, que muita coisa grosseira e deselegante pode, em virtude do hábito e de um certo sentido de normalidade, passar a ser ignorada e invisível, ou pelo menos despercebida. Até que um dia, graças a uma mudança de perspectiva que nos permite abrir e esfregar a cabeça como por vezes os olhos (no caso do restaurante, abrindo e esfregando os ouvidos) podemos cair de novo na realidade que, não poucas vezes, se revela terrível. Embora nem toda a gente caia, ou, quando cai, já é tarde de mais.