11 junho, 2024

NO BANCO DE TRÁS

Há quem seja pago para cortar o cabelo, para desenhar edifícios, para montar circuitos eléctricos, para conduzir comboios, para gerir empresas, para colar tijolos ou para tratar da saúde das pessoas. Eu sou pago para falar e há décadas que falo, muito, imenso, resmas e resmas de palavras, uma torneira avariada da qual não pára de pingar palavras para cima de alunos, colegas, funcionários e pais dos alunos. Um pesadelo, uma condenação, um suplício que me transforma num Sísifo com uma saca de 50 quilos de palavras às costas. Daí os fim-de-semana serem pequenos oásis de silêncio em que acordo sem pensar no que vou ter que dizer. Daí também ver a reforma que se aproxima como uma utopia silenciosa, um luxo mutista com uma torneira ainda na parede, mas já sem canalização ligada à rede pública das palavras, uma saca vazia, resmas e resmas, mas de um branco imaculado. É por isso que desde que passei a andar de táxi que vejo neste um espaço perfeito de comunicação. Como os taxistas gostam de se fazer ouvir e dispensam bem o que os outros têm para dizer, limito-me a ir no banco de trás a ser levado para o meu destino com alguém que fala, e eu calado apenas fingindo que estou muito interessado no que estou a ouvir, ligando o piloto automático para dizer "Sim...Claro...Pois é...". Depois, é só estacionar à minha porta para ser devolvido ao silêncio que vou treinando enquanto não chega o absoluto e definitivo silêncio da reforma.