20 maio, 2024

A CRIANÇA NO TEMPO

Durante a caminhada matinal passo por uma estrada na qual, apesar de pouco passar das sete, vou dar com uma multidão de carros e camiões nos seus galopantes e ruidosos movimentos. Ia eu neste martírio civilizacional quando sou de rompante assaltado por uma memória da escola primária: a professora a dizer que tínhamos pêlos no nariz para nos protegerem das impurezas do ar. Não se trata de madalenas e chás, antes de uma livre associação (ainda que com substância causal) entre dois pontos separados no tempo por um escuro hiato de mais de cinco décadas. Não é surpreendente tal associação em particular. O mesmo não posso dizer da quantidade avassaladora de microscópicas recordações deste género que cada vez mais vêm ter comigo, algumas delas de uma tremenda infimidade e irrelevância. Talvez a velhice seja mesmo assim, ir lentamente regressando ao que nos fez levantar as orelhas para, baixando-as agora, fechar o ciclo. Externamente posso parecer o avô da criança que um dia fui. Mas talvez Freud tenha mesmo razão ao dizer que a criança é o pai do adulto.