17 maio, 2024

GESTOS

Tendo atingido o limite da paciência, resolvo acenar à empregada do restaurante, apontando para o pulso esquerdo. Ela percebeu logo, dando a entender que iria à cozinha para ver o que se passava. Um dia, este meu gesto irá desaparecer. São raros os miúdos que usam relógio, mas ainda vêem pessoas com relógio. Quando morrerem as pessoas que ainda usam relógio, e depois as que não usaram, mas viram usar, iremos então ter uma geração sem qualquer contacto com relógios e para a qual o meu gesto não teria qualquer significado. Temos um contacto diário com um património antigo. Passeamos por castelos medievais, palácios renascentistas e igrejas barrocas, lemos obras literárias com milhares de anos, ouvimos música com trezentos anos. Coisas de mundos que morreram mas que continuam a fazer parte do nosso. Mas o que fazer com os gestos? Que movimento ou instituto de defesa do património protege os gestos? O gesto do dedo da mão direita no pulso esquerdo não era possível antes da invenção do relógio de pulso, como não vai ser possível após o relógio de pulso. Um gesto, pois, que nasceu, viveu e vai morrer. Dizem que o gesto é tudo. Sim, é, explica muito bem o que não se consegue ou pode com as palavras. Mas o que diz o Livro do Eclesiastes em relação à vida em geral pode ser extensivo, em particular, aos gestos. Bem mais que o homem, pois se uns vão morrendo, também há outros que vão nascendo, o gesto é o mais evanescente e frágil bem de todo o património, ausente de museus, livrarias, salas de concerto, monumentos. Um património que se esvai por completo no nada tal como o breve instante que dura, por exemplo, numa mesa de restaurante por causa de um almoço que nunca mais vem.