27 maio, 2024

CLUBE DOS POETAS MORTOS

Levei uma turma a ver a colecção da Fundação Gulbenkian. Para além de fotografar três objectos de todo o museu que representassem três das cinco teorias sobre a definição de arte e justificando-o, cada aluno teria que escolher o seu preferido e explicar porquê. Um aluno escolheu O Inverno, de Jean François Millet, havendo uma parte da sua justificação que me fez levantar as orelhas: " (...) estive mais de 5 minutos a olhar para a beleza desta pintura e é sinceramente uma pintura demasiado simples para ter estado tanto tempo a olhar para ela mas achei que era demasiado bonita para não a ter escolhido". Este comentário é extraordinário e tem tanto de humilde como de ingénuo. A inveja que eu tenho por já não ter 17 anos para poder escrever assim. Um adulto jamais escreveria isto, a não ser que seja poeta ou louco, o que vai quase dar no mesmo, e não sou uma coisa nem outra, a outra, pelo menos por enquanto. Ou acharia o quadro demasiado simples e não voltaria a pensar nele, ou, por gostar muito e estar cinco minutos a olhar para ele, não admitiria ser uma "pintura demasiado simples". Este rapaz apresenta ainda vestígios de pensamento infantil, considerando-se isto um elogio por se tratar do pensamento mais livre e descomplexado que pode haver, sem medo de incoerência, neste caso, não poder deixar de olhar para o que não foi feito para ser olhado, e viver bem com isso. Talvez isto ajude a explicar por que viria a desiludir-me com certas coisas que me marcaram em jovem: ter a cabeça cheia de entulho, de teorias, de complexidade, mas também uma preocupação com a ordem argumentativa, perdendo assim a abertura para o que é simples. Se lá voltar daqui a uns anos, o mais certo é este rapaz, entretanto homem, ficar perplexo por ter um dia escolhido esta pintura como obra preferida de todo o museu em vez de um tapete ou peça de mobiliário, como de resto alguns colegas que, tão jovens quanto ele, foi já o que escolheram. Bem-vindo ao clube.