03 junho, 2024

NIOBE

Montaigne não gosta da tristeza e muito menos de que seja revelada de modo exuberante. Lembrando um verso de Petrarca, "quem pode dizer como arde, é em fogo pouco", alega que a força de uma dor, para ser extrema, deve afligir a alma por dentro e impedir a sua liberdade de acção. E dá vários exemplos de figuras que ficaram impassíveis diante de perdas terríveis: Psaménito, ao ver a filha como escrava e o filho conduzido à morte ou Charles de Guise ao saber da morte de dois irmãos. Não menos exemplar é o facto de Timante, depois de pintar diversas expressões de dor consoante o grau de sofrimento de várias pessoas face ao sacrifício de Ifigénia, ao chegar a vez  de pintar o pai cobriu-lhe o rosto por já não haver expressão possível. Para dar ainda mais consistência à sua tese, Montaigne refere também o caso de Niobe que, "petrificada de dor" depois de perder sete filhos e sete filhas, se transforma em pedra. Com isto veio-me à cabeça o final de O Padrinho III quando, à saída da ópera, Michael Corleone, ao ver a filha morta, fica congelado como no Grito de Munch, engolindo toda a dor para dentro do infinito buraco vazio em que se transformou. Fui rever a cena para confirmar se entraria no padrão de Montaigne. Não entra, pois logo de seguida solta um daqueles gritos que se ouvem em todo o universo e não no silêncio de uma pintura (embora também se possa dizer que a intenção de Munch era a de que aquele grito se ouvisse em todo o universo). Será Corleone um fraco ou um pai que arde em fogo pouco por mostrar que arde diante da morte da filha? Montaigne faz um bocado de batota com o episódio de Niobe, não contando toda a história. Conta Ovídio, nas Metamorfoses, que depois de ter sido levado para o cimo do monte o bloco de mármore que foi um dia o corpo de Niobe, dele nunca mais deixou de jorrar água.