17 junho, 2024

A LOJA DE ANTIGUIDADES

Mal escrevo a palavra "inteirado" reparo que escrevo a palavra "inteirado", surpreendido pela presença de um fantasma dentro de mim, cuja voz ainda se faz ouvir mas de uma etérea transparência prestes a desfazer-se. No dia anterior a tê-la escrito, recebi a visita de uma antiga aluna que desde então não via, e que resolveu presentear-me com um bolo mas logo me perguntando com ar preocupado se sou vegan porque o bolo tinha (tinha, que aqui é literal) ovos. Quando lemos uma narrativa antiga temos a tendência para a assimilar aos nossos quadros mentais, seja Homero a contar as aventuras de Ulisses, o percurso sentimental de Anna Karenina ou a Lisboa de Eça. Há encenadores que gostam de pegar em peças de teatro antigas e trazê-las para a actualidade, o que para muitos é duvidoso, sobretudo pela traição ao texto original. Mas é isso que fazemos mentalmente quando lemos um texto antigo, transformando Ulisses, Anna Karenina ou Carlos da Maia, em pessoas como nós, exceptuando o historiador enquanto historiador que, esse sim, de lupa na mão, gosta de procurar o que o tempo mudou. Foi também isso que me aconteceu nas duas situações: ver-me de lupa na mão a descobrir pequenas mutações da realidade das quais nem sempre nos apercebemos no dia-a-dia. Quantos jovens de 18 anos, esses que já não sabem interpretar a expressão "Não se pode ter sol na eira e chuva no nabal", dirão hoje, ou alguma vez na vida, a palavra "inteirado"? Entretanto, quem, há décadas, ao oferecer um bolo, iria perguntar se a pessoa é vegan, pergunta que, hoje, na cabeça de uma jovem que nem tem trinta anos tem, se tornou banal? A História é feita de períodos, que são enormes fatias de tempo como o Antigo Egipto, a Idade Média, o Renascimento ou o século XX. Isso mesmo: o século XX. "- O que andas a dar em História? - O século XX". Digamos que essas são as montras iluminadas da loja. Mas, lá dentro, no recôndito armazém, bem fechadas e envoltas em escuridão e teias de aranha, estão milhares de caixas cheias de destroços que nunca chegar sequer a passar pela montra, embora tenha havido um tempo em que fizeram parte da vida das pessoas, mas também da qual saíram sem se dar por isso.