24 julho, 2024

O AFIA-LÁPIS

Há uns dois anos e tal comprei um afia-lápis com uma particularidade muito especial: em vez de afiar lápis, o que faz todo o sentido num afia-lápis, parte os bicos dos lápis. Tentei afiar de todas as maneiras e feitos: depressa, devagar,  a rodar o afia, a rodar o lápis, a rodar os dois ao mesmo tempo, para a esquerda, para a direita, e nada, bico sempre partido tão certo como hoje ser Quarta-feira. Claro que tive de comprar outro, mas, só para me divertir, há alturas em que tento ainda mais uma vez. Sem sucesso, claro. Talvez não seja irrelevante o facto de o subversivo e indomável afia ter sido comprado num centro cultural de arte contemporânea, o que até já me levou a pensar que um afia-lápis que parte lápis pode ser ele mesmo um contemporâneo objecto artístico, e com elevado valor performativo. Tivesse sido comprado num supermercado ou numa papelaria e há muito que teria o seu destino traçado: o lixo. Ter sido num centro cultural acaba por dar-lhe uma certa dignidade institucional, havendo por isso algum pudor na sua aniquilação, embora esta pudesse apresentar um valor tão performativo como o do próprio acto de afiar, quem sabe se já previsto pelo criativo fabricante. Talvez seja esse mesmo pudor a razão pela qual tanto do que se vai expondo em centros e galerias vocacionados para a arte contemporânea não tenha também o mesmíssimo destino que deveria ter o meu contemporâneo afia-lápis.