21 maio, 2024

PISTAS

Um dia estava sentado no meu sofá de leitura quando descubro uma máquina de lavar roupa. Nada de surpreendente se pensar que a sala dá para a cozinha, onde sempre esteve a máquina. Mas nunca até àquele dia me tinha apercebido do quanto é horrível estar a ler numa sala com livros, discos e quadros, com vista para uma máquina de lavar na cozinha. Qual é a diferença entre ter uma máquina na sala ou estar na sala a ver a máquina? Quando não passa pela cabeça de ninguém ter uma máquina ou um frigorífico na sala. Foi assim uma espécie de revelação, um estalo que me despertou para uma distópica e horrenda realidade. Daí que sempre que agora me sento para ler, fecho a porta e deixa de haver cozinha. O que se passa com cidades cheias de carros não anda longe de máquinas de lavar em salas. O que são os carros senão electrodomésticos andantes invadindo o espaço visual e sonoro das cidades? Claro que estamos habituados, até porque vivemos em cidades com ruas largas para carros e passeios estreitos para pessoas, que cada vez os usam menos. E se uma cidade for feia, carros e cidade até parecem feitos um para o outro, não se dando por eles. Mas quanto mais bonita e elegante for a cidade, mais os carros a desfiguram, mais se nota o absurdo destes ruidosos mecanismos na paisagem, seja estacionados, destruindo belos cenários de natureza espacial, arquitectónica ou vegetal, seja a circularem de um lado para o outro, fazendo barulho e deitando fumo pelo escape. Em casa ainda é possível fechar a porta da sala para não ver a máquina. Já com os carros a única porta que se pode fechar é a da rua, quando entramos em casa. Mas a mesma porta que somos obrigados a abrir sempre que precisamos de ir para a rua, ou antes, para a pista, e respectivas garagens ao ar livre espalhadas pelas cidades.