13 junho, 2024

PLATONISMO PARA O POVO


Eis o que pode ser um pesadelo para uma feminista: uma pessoa dizer que tem de ir ao médico ou a um advogado, apesar de chegar a um centro de saúde e o mais certo é dar com uma médica, ou de haver tantas advogadas como advogados. Mas convém desdramatizar: não, pensar em ir ao médico não é pensar num homem que seja médico, atirando as mulheres para empregadas de limpeza e manicures. Se alguém disser que precisa de um pedreiro, aqui sim, há uma coincidência entre a masculinização do nome e da pessoa. Ontologicamente falando, ser homem não implica ser pedreiro, mas, socialmente falando, ser pedreiro implica ser homem. Embora o masculino "médico" possa ser explicado por vir de um tempo em que não havia médicas, tornou-se numa espécie de ideia platónica, uma pura forma desmaterializada e assexuada que faz com que pensar em médico não implique pensar num homem que seja médico. Eloquente exemplo é esta informação. Trata-se de um sítio onde nunca trabalhou um homem. É verdade que não ficaria bem dizer "As cabeleireiras estarão encerradas de 9 a 12 de junho" pois faria pensar no encerramento das duas profissionais que lá trabalham, em vez do salão. Mas também soaria mal "A cabeleireira estará encerrada". Porque sexualizaria o nome, remetendo para um tempo, pelo menos na província (apesar de na minha terra, nos anos 70, entre dezenas de cabeleireiras, haver dois cabeleireiros), em que a profissão estava para as mulheres como pedreiro para os homens. Ou seja, continuaríamos a pensar que uma mulher estaria encerrada. "Cabeleireiro", pelo contrário, tal como médico ou advogado, surge como ideia platónica, um anjo assexuado, um modo neutro de invocar uma profissão, tal como dizer que se gosta de cães ou de gatos não implica que sejam machos em vez de fêmeas. Ao contrário do que acreditam muitas feministas, que, como no 1984, de Orwell, desejam impor uma formatação do pensamento através de uma formatação da linguagem,  o pensamento transcende a linguagem, a qual não passa de uma ferramenta que utilizamos de forma aberta e criativa e tantas vezes liberta de grilhões gramaticais. Platão poderia desprezar o povo, mas o povo, sem o saber, está muito longe de desprezar Platão.