06 maio, 2024

PORTO, MAIO, 2024

Durante as minhas campestres caminhadas, ou ao passar por aldeias e casais, sou por vezes assaltado por cães que descarregam sobre mim uma raiva que acumularam ao longo de milhões de anos. Embora nunca tenha sido mordido, continuo a gelar e a estremecer de medo. Medo que acumulei ao longo de milhões de anos. Podemos ter saído das cavernas, mas as cavernas nunca saíram de nós. Ao já ter passado por pessoas com ar ameaçador em sítios onde senti bem o peso da minha fraqueza, não reajo de modo tão primitivo como diante de um cão. Talvez por saber, mesmo não consciente nisso, que o cérebro de um cão é mais primário do que o de uma pessoa, conseguindo assim perceber melhor o que pode estar a acontecer na cabeça de uma pessoa do que na de um cão. Enquanto o cão é puro instinto, uma pessoa pensa, fala e talvez dê para negociar: "Leva lá o telemóvel mais os 20 euros que tenho na carteira, mas não me faças mal". Com o cão que sai do portão com ar de querer desfazer-me já não posso fazer isso. Mas não será isto uma ilusão, e uma ilusão que nos pode sair cara? O cérebro de uma pessoa é mais complexo do que o cérebro de um cão. O problema é tal complexidade não estar necessariamente ligada às melhores intenções. É que se o medo em nós tem milhares de anos, também a raiva, como no cão, está há milhões de anos acumulada, querendo isto dizer que a junção da complexidade de certos cérebros com os instintos mais primários devia também ser motivo para nos fazer gelar e tremer de medo. Podemos ter saído das cavernas, mas as cavernas nunca saíram de nós, tendo a humanidade já tido tempo para saber, e neste caso muito menos do que milhões de anos, que se relaxarmos em demasia arriscamo-nos a ser mordidos.