PONTEIROS PARADOS
13 dezembro, 2025
UBER HITS
12 dezembro, 2025
ISTO NÃO É O BANGLADESH
Hoje, de manhã, o comboio chega ao Oriente, saindo a esmagadora maioria das pessoas que iam na carruagem. Indo junto à janela, tive que ficar a aguardar, pois apesar de já estar mesmo mesmo mesmo juntinho ao corredor, ninguém me dava passagem. Ninguém, salvo seja. Um rapaz, não sei dizer se indiano, paquistanês ou bengali, parou, fazendo o gesto para eu passar. Agradeci para finalmente descer o degrau e chegar a Lisboa.
11 dezembro, 2025
10 dezembro, 2025
O ELMO DE MANBRINO
09 dezembro, 2025
CONTINENTE NEGRO
E por falar em anjos, prosseguem as dificuldades dos meus alunos com a sua existência. Diante desta imagem no enunciado de um teste, diz um aluno tratar-se de uma mulher com asas, incapaz de perceber que se trata da representação de um anjo de acordo com a iconografia tradicional. No século XIX, bastava ver um ser vivo com dois braços, duas pernas, cabelos compridos e uma crinolina, para logo identificar um anjo que nem sequer precisava de se chamar Angélica. Hoje, chapa-se um anjo nos olhos de um pueril efebo e o que vê ele? Uma mulher com asas. Entre o desvario romântico do século XIX e o realismo grosseiro do século XXI, resiste a eterna pergunta: o que é uma mulher? Talvez nunca venhamos a sabê-lo e ainda bem que assim seja.
08 dezembro, 2025
ANUNCIAÇÕES
Ainda há pouco dias, numa aula dedicada a um assunto de natureza epistemológica, referi-me à Matemática como ciência imaculada. Perguntei se sabiam o que significa imaculado e obviamente que não, o mesmo se passando, a fortiori, com mácula. Para começo de explicação perguntei se sabiam o que é a Imaculada Conceição e também não, aliás, nem dela tinham sequer ouvido falar. E lá expliquei, tal como já expliquei tantas outras coisas que qualquer criança de outros tempos sabia desde a escola primária e da catequese. Não sendo eu dado a desvarios narcísicos, sinto-me cada vez mais um anjo Gabriel desdobrando-se em múltiplas anunciações diante de mentes em estado virginal. Que ao menos o feriadinho faça muito bom proveito.
05 dezembro, 2025
04 dezembro, 2025
ISTO NÃO É A TURQUIA
É verdade que isto não é o Bangladesh, mas também não é a Turquia, outro país infestado de muçulmanos. Em Istambul não se compram bilhetes nos autocarros. Adquire-se um cartão numa máquina que se vai recarregando. Um dia, entro no autocarro, encosto o cartão para descontar a viagem e descubro que já não tenho saldo. Fico meio parvo a olhar para o motorista sem saber o que fazer e quando me preparo para sair para chamar um Uber, faz-me sinal para eu esperar. Vira-se para trás (o autocarro ia quase vazio) e aborda uma rapariga de hijab que logo se levanta para ir pagar a minha viagem com o seu cartão. Eu, gratíssimo com o que me estava a acontecer, puxo da carteira para lhe pagar. Recusou. Insisto, e ela sempre a recusar, até que desisto, meio embaraçado. Quando chego à minha paragem (ela ia continuar) aproximo-me dela para de novo agradecer, juntando assim o meu sorriso de ateu nascido num país cristão ao seu sorriso muçulmano bem destacado pelo hijabe. Não, isto não é a Turquia.
03 dezembro, 2025
WHY?
02 dezembro, 2025
ICEBERG
Uso bastante o advérbio "porventura", tanto na escrita como na oralidade, mas estou seriamente a ponderar deixar de o usar. Como um pequeno bloco de gelo separado do principal, não vá o prefixo transformar-se numa preposição.
27 novembro, 2025
MEIO INVISÍVEL
Os que vêem o copo meio cheio e os que vêem o copo meio vazio, partilham, sem saberem, uma coisa em comum: não ver um copo que está objectivamente a meio. O que não deixa de ser normal, pois, como nos aviões, o lugar do meio é desconfortável, nomeadamente no que diz respeito às virtudes, embora seja lá que ela se encontra.
26 novembro, 2025
PENSAMENTO MÁGICO
«Christoph Kolumbus era o barbeiro de Bloomfield. Fazia parte da bagagem de Bloomfield e aparecia sempre, no final, como reforço. Era uma pessoa conversadora e de nacionalidade alemã. O seu pai era admirador do grande Colombo e, por isso, batizou o filho com o nome do navegador. Mas o filho, com o grande nome de um homem célebre, era barbeiro.»
Quisesse Alonso Quijano ser apenas ele próprio em vez de D. Quixote e passaria despercebido pelo mundo. Ser pobre e vulgar não é risível. O que torna Quixote risível é a ilusão ou delírio sobre a sua identidade. O mesmo efeito cómico consegue Roth numa única linha. O que torna esta passagem letal não é o pai atribuir ao filho o nome Colombo. É ele ser barbeiro e parte da bagagem de um homem importante. A moral da história é fácil: ridicularizar o pensamento mágico. Neste caso, envolvendo a magia do nome. Mudando de cenário, podemos ainda ver o pensamento mágico como um imaginário elevador identitário. Ainda com o nome como recurso, quem diz Colombo diz Salvador ou Benedita para se transformarem num verdadeiro "Salvador" e numa verdadeira "Benedita". Mas também ir, no Verão, às praias dos ricos, para viver a ilusão de ser rico. Ou alguém que, não sendo rico, consegue ter dinheiro para frequentar os restaurantes dos ricos, comprar as marcas de roupa dos ricos, ou mesmo os carros dos ricos. Ou um jovem urbano acreditar que é artista só porque através das roupas, cabelo e óculos compõe artisticamente um ar de artista, tal como em tempos se acreditava que bastaria entrar num café com um livro debaixo do braço para se transformar num intelectual. Quixotes não faltam. E só não são risíveis, estando, ao contrário do original, protegidos dos olhares alheios, porque num mundo de Quixotes é tão cego o que vê como o que é visto.
25 novembro, 2025
UN ANGE EST PASSÉ
Num teste sobre David Hume coloquei quatro imagens no enunciado: uma gaivota, o Taj Mahal, o teorema de Pitágoras e esta que aqui se vê. Não um, não dois, mas três alunos chamaram-me para perguntar o significado desta imagem. Expliquei, não se fez silêncio, mas não sem sentir um anjo a passar bem fundo na minha alma.
24 novembro, 2025
EM SURDINA
Na sexta-feira fiz três exames auditivos para me provarem o que há muito sabia: preciso de aparelho. Mas fatalidade que tenho vindo a rejeitar, uma clara escapadela ao choque da minha obsolescência e decrepitude. Eu sei, recusar o aparelho para fingir contornar o inexorável coloca-me no mesmo nível daqueles velhos com perucas ridículas, ou que pintam o cabelo de um preto tão carregado que transforma a cabeça numa estrada alcatroada, ou aquelas velhas que borram a cara com cremes, rimel e um baton tão forte que mais parecem saídas de uma pintura expressionista. Mas hoje voltei a ter o meu choque de realidade logo na primeira aula. Aluno: "Stor, o que significa............?" Eu: "Caramba, no 11ºano e não sabe o que significa indiferença?!" Aluno: "não, ...............?". Eu:" Indiferente!? Vai dar no mesmo, indiferença ou indiferente, qual é a diferença". Aluno: "Não, stor, ........................?". Lá tive que recorrer à estratégia habitual, aproximando-se do aluno. Eu: "Pode então repetir?" Aluno: "Inferência". Eu: "Ahhhh, inferência!". E pronto, eis o miserável pântano no qual me vou enterrando cada vez mais mais. Mas quero lá saber, continuarei a resistir enquanto puder. Há um romance de David Lodge cuja personagem principal sofre de surdez, sendo esse, aliás, o tema central do romance. Já o li há uns anos, mas lembro-me bem de ele dizer que, ao contrário da cegueira, a surdez é risível, produzindo efeitos cómicos. Quero lá saber, insisto. Sei pelo menos que a minha resistência, sendo meramente mental e não física, livra-me da triste figura dos velhos de peruca ou cabeça alcatroada, ou das velhas que parecem saídas de uma pintura expressionista.
22 novembro, 2025
TECNOFEUDALISMO
Atravessei ontem de comboio uma extensa porção de Ribatejo rumo à estação do Oriente. Esta é a época do ano em que está mais bonito, mais verde sob uma luz coada, muita água devido às recentes chuvadas. Como não poderia deixar de ser, aproveito os lugares livres à janela para os olhos fazerem da viagem não só um meio, mas um fim em si mesmo, como no poema de Kavafis. Já depois de Santarém vejo um grupo de pessoas a trabalhar no campo, embora sem perceber o quê. Uma visão impressionista, sei apenas que, ali juntas e pelas posturas, estariam a trabalhar. Isto foi poucas horas depois de ter lido, lá pelas cinco da manhã, ao acordar, uma entrevista de Varoufakis, devido ao seu recente livro. Talvez por isso, e pelo que já me tinha apercebido à minha volta, olho, como num jogo de ténis, para as pessoas a trabalhar naquela arcaica paisagem e para o interior do comboio onde ia toda a gente de olhos pregados no telefone, excepto uma senhora a dormir o sono dos justos. Desta vez a viagem não foi apenas uma viagem no espaço, mas também no tempo, unindo num mesmo pontinho cronológico o passado e o presente.
21 novembro, 2025
ÁGORA AGORA
Numa certa rua de uma pequena cidade, que é a minha, por meríssima coincidência, encontraram-se três professores de Filosofia. A professora e um dos professores encontraram-se e ficaram à conversa. Logo depois aparece o outro, que era eu, formando-se um trio. Se naquele momento estivéssemos a ser observados (mas não escutados) por um extraterrestre com bons conhecimentos de história humana embora péssimo a Geografia, e também com uma péssima noção do tempo devido a padrões temporais muito diferentes dos nossos, iria muito provavelmente concluir que estávamos na Grécia Antiga.
20 novembro, 2025
19 novembro, 2025
TAMPÕES
«Conheço Taddeus Montag, o amigo de Zwonimir, pintor de tabuletas, mas que no fundo é caricaturista. É meu vizinho, mora no quarto 705. Já estou aqui há meia dúzia de semanas e, ao meu lado, Taddeus Montag passa fome e nunca grita. As pessoas são mudas, mais mudas que os peixes [...].»
Houve um tempo em que era S. António a dar sermão aos peixes. Resultado de um processo evolutivo socialmente modificado, o que vemos hoje são bem nutridas petingas em solo firme e de cujas potentes goelas são expectorados estrepitosos e desconchavados sermões, enquanto os velhos Santo Antónios deste mundo, lutando contra as ondas, deixaram de se ouvir. Entretanto, tampões nos ouvidos aconselham-se, e não é por causa da água.
18 novembro, 2025
SONATA EUROPEIA
17 novembro, 2025
MUROS
16 novembro, 2025
O FANTASMA DE CANTERVILLE
Há dias, pus os alunos a fazer uns exercícios de Lógica. Aquele tipo de aula em que o professor anda a circular pela sala para ir dando apoio. Ao passar num corredor entre duas filas de carteiras, vejo um papel escrito no chão. Baixo-me para o apanhar, pergunto a quem pertence e de imediato uma aluna responde que a si, recolhendo-o com ar satisfeito da minha mão, mas sem sequer para mim olhar. Uns dez minutos depois estou a ajudar uma aluna quando cai um telemóvel da carteira atrás da sua. Baixo-me para o apanhar e a aluna recolhe-o apenas abanando a cabeça de um modo discreto, isto, para falar de um modo eufemístico. Não sei dizer se estas duas situações em tão curto espaço de tempo terão relevância estatística ou se se tratou de mero acaso. Mas se pensar na quantidade de vezes em que dou prioridade ao passar numa porta ou agarro a porta, mantendo-a aberta para quem vem atrás de mim, sem observar qualquer reacção, na quantidade de vezes que digo «Bom dia» ou escrevo um mail de trabalho (enviar documentos e assim) sem obter resposta, estou então inclinado a pensar que se trata de uma tendência. O que me faz sentir, apesar de não passar de um vulgar plebeu, um aristocrata ou burguês do século XIX deambulando meio invisível pelas escadas rolantes de um moderno shopping center do século XXI.
15 novembro, 2025
O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL
«Acontece que admirei tanto as luvas em amarelo-canário de Alexander como o seu chapéu - olhando para esse homem ninguém pode duvidar que ele veio directamente de Paris e do sítio onde Paris é mais Paris.»
Há imensos de lugares em Paris, os quais, sendo Paris, não são onde Paris é mais Paris, sítios iguais aos de tantas outras cidades. Se uma pessoa fosse levada às cegas para várias cidades europeias, ou mesmo mundiais, e depois lhe pedissem para adivinhar onde está, não iria ser capaz, visto ser igual a tantas outras. Mas também há em cada cidade lugares onde logo a reconheceríamos, e nem sequer estou a pensar na Torre Eiffel ou no Big Ben. Com uma pessoa passa-se o mesmo. Sabemos que o João é homem, português, engenheiro, benfiquista e gosta de Bacalhau à Brás. Mas ser um homem em vez de uma mulher não é a coisa mais original. Ser português também não. E há milhares de engenheiros, benfiquistas e apreciadores de bacalhau. Onde o João é mais João é na individualidade que o distingue de todos os outros, um conjunto de experiências, características e memórias que são só suas, das quais pode ou não gostar. O mesmo se passa ainda com os países ou culturas. Não haverá um meio-termo entre um nacionalismo ou etnocentrismo serôdio e delirante, e um vazio universalismo que tende a menosprezar uma identidade cultural? Como o João, que não é superior ou inferior aos outros, é bom entender o que Portugal tem de mais Portugal ou o Ocidente de mais Ocidente. Um útil exercício para nos defendermos, não de inimigos que venham de fora para nos destruir, mas do radicalismo, tanto à direita como à esquerda, de quem já nasceu português ou europeu, o qual, como um tumor maligno, mina a coesão social.
14 novembro, 2025
NEWSPEAK
Dizia Fradique Mendes que Lisboa é uma cidade traduzida do francês em calão. Cento e tal anos depois, nem se dá ao trabalho de a traduzir do inglês.
13 novembro, 2025
DIÓSPIROS
Diferente sorte tiveram as palavras pudico e dióspiro. A primeira, sendo grave passou a ser dita como se fosse esdrúxula. Já a segunda, sendo esdrúxula, passou a ser dita como se fosse grave, isto, com claro benefício para a primeira e prejuízo para a segunda. As palavras esdrúxulas têm uma esdrúxula beleza e algumas bem a merecem, como é o caso de pudico. O pudor é uma das grandes conquistas da humanidade a qual, graças a ele, ganhou elegância, delicadeza e sobriedade nos gestos, no rosto, nas palavras ditas e sobretudo nas não ditas. Daí que uma pessoa com esse atributo mereça ser considerada púdica em vez de pudica, ainda que seja esta a correcta. O que raio aconteceu para os dióspiros terem passado a diospiros? Pensemos no ridículo de belas palavras como Diógenes, Andrómeda, Orígenes, Antígona, Penélope, Eutífrone, Eurídice, Édipo, Perséfone, Átila, diâmetro, triângulo, antílope ou ópera, tornadas graves. Um horror, uma degradação do original. Lembro-me da sensação de estranheza ao ver pela primeira vez a palavra asfódelo. Mas de imediato me rendi à sua beleza fonética. O que seria se, desgraçadamente, a palavra passasse a grave como aconteceu com o dióspiro? Um horror ainda pior. Mantendo-se fiel ao original, continua assim digna de uma pintura de Khnopff ou pré-rafaelita, de um parágrafo de Huysmans, de um verso de Baudelaire, Mallarmé ou Pessanha. Há gente que olha com indiferença, ou mesmo desprezo, para as palavras. O que conta é comer o fruto, querem lá saber como se chama. Não é assim, até por uma questão de respeito para com a dignidade da coisa. A Leonor de Camões, a Beatriz de Dante ou a Simonetta de Botticelli seriam as mesmas com outros nomes, sobretudo horríveis? Não. O que é belo e bom merece uma palavra bela e boa. O que não veio a acontecer com os nossos dióspiros, esse sumptuoso fruto descido ao nível da mais desdourada das vulgaridades.
12 novembro, 2025
CASTA DIVA
11 novembro, 2025
NA MELHOR PAISAGEM CAI A NÓDOA
Tenho em casa uma bela vista, uma paisagem rural com serra ao fundo. Amiúde me ponho à janela a contemplá-la enquanto bebo café ou chá, ou deixo derreter lentamente um pedaço de chocolate negro. Há dias, a magnífica vista passou a ficar conspurcada por um enorme cartaz no qual um emergente político lembra que os ciganos devem cumprir a lei. O cartaz é duplamente violento. Esteticamente, no modo como interfere na melancólica fruição da paisagem. Mas também por me lembrar, não que existem demagogos e charlatães, pois sempre os houve e haverá, mas a famosa de Kraus «o segredo do demagogo é fazer-se passar por tão estúpido quanto o seu auditório, para que este imagine ser tão esperto quanto ele». Ideia profundamente irritante, a de me saber rodeado de gente estúpida, pior ainda quando, no recato doméstico, uma pessoa se aproxima da janela para fruir de uma bela paisagem.
10 novembro, 2025
VENTURA, VENTURA, VENTURA
Ele adorava a América. Nos dias em que a ração era boa ele exclamava: América! Quando via um primeiro-tenente «fino», dizia: América! E como eu era bom atirador ele chamava aos meus tiros: América!
Tendo ontem chegado já tarde à estação do Entroncamento tive de pegar um táxi convencional por a Uber já não fazer serviço a partir de certa hora. Entrei expectante sobre o tempo que iria demorar o taxista a dizer mal dos pretos, ciganos ou imigrantes em geral. Não disse, mas há que refrear o optimismo. Nem um minuto demorou para começar a falar mal do Entroncamento, isto é, do que deveria ter sido feito pela anterior câmara, mais isto e aquilo de errado nos últimos anos para, logo de seguida, desabafar três vezes que do que o Entroncamento precisa é de políticos que gostem de Portugal e dos portugueses. Achei estranho ele não ter dito políticos que gostem do Entroncamento e das pessoas do Entroncamento, mas logo pensando tratar-se de um taxista e, como se isso não bastasse, de um dos três concelhos de Portugal onde André Ventura foi eleito presidente de câmara, passou a fazer todo o sentido.
08 novembro, 2025
GOYA REVISITADO
07 novembro, 2025
CONTRA-ILUMINISMO NA ESCOLA PORTUGUESA
06 novembro, 2025
O TAMBOR
«As pessoas continuavam a chegar de Berlim e de outras cidades. Eram pessoas que falavam em voz alta, gritavam e mentiam aos berros para calar a voz da consciência.»
Dizia Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, mais conhecido por Barão de Itararé, que o tambor faz barulho mas é vazio por dentro. Ainda que fazendo a frase perder a graça, corrigiria a adversativa para a transformar em causal: o tambor faz barulho porque é vazio. E, já agora, quanto mais vazio mais barulho faz. O barulho é sem dúvida uma importante categoria política que revela uma enorme falta dela com o intuito de adormecer as consciências dos outros.
05 novembro, 2025
KITSCH NET
Diria que os repuxos em lagos estão para a natureza como os leões nos muros das casas do Portugal profundo para o gótico. Uma espécie de recriação fofinha da tempestade no mar apresentada por Kant como exemplo de sublime. Ideal, pois, para, em segurança, fazer mais umas selfies para o Instagram.
04 novembro, 2025
CHAPÉUS HÁ MUITOS
«Em toda a minha vida nunca vira um chapéu de feltro tão bonito, era uma maravilha, a cor clara, suave e terna do chapéu não se podia definir bem e, no meio, as dobras tinham sido cuidadosamente feitas. Se eu algum dia usasse este chapéu, sentiria repugnância em cumprimentar alguém, por isso perdoo a Alexander o facto de ele não cumprimentar as pessoas, só põe um dedo no chapéu, o dedo indicador, e faz continência como os militares quando correspondem aos cumprimentos de um cozinheiro militar.»
E quem diz o chapéu diz a cor da pele, a nacionalidade, o apelido, a profissão. Tudo chapéus que nos empossam de um estatuto que nos eleva tão acima do comum dos mortais que o corpo acaba por ignorá-los, obrigando apenas ao movimento de um dedo blasé. O mundo, na verdade, é um quartel, com os seus códigos bem estabelecidos e onde a farda anula o simples cidadão que, moral e humanamente, é apenas mais um, mas que dentro da sua consciência, e nem precisa de ser nas suas profundezas, consegue ser menos um.
03 novembro, 2025
S. TOMÉ 2.0
02 novembro, 2025
01 novembro, 2025
HALLOWEEN
O modo tão natural e sorrateiro que quase nem se deu por isso, como em tão pouco tempo passámos dos santos e bolinhos para as abóboras e bruxas, ou seja, de um imaginário cristão para um imaginário pagão, leva-me a desconfiar que talvez não tenha sido assim tão diferente a passagem do imaginário pagão para o imaginário cristão nos primeiros séculos do anterior milénio. A história é mesmo assim, não funciona por decreto (se bem que no caso da religião alguma dela tenha sido imposta aos respectivos povos), mas como um novo gás, invisível e inodoro, lentamente inalado, levando as pessoas a adormecerem com uma consciência para acordarem na manhã do dia seguinte já com outra.
31 outubro, 2025
A CONSCIÊNCIA COMO CIÊNCIA PERENE
30 outubro, 2025
MEIO CHEIO
29 outubro, 2025
ENTRONCAMENTO
Durante muito tempo usei o táxi convencional para me levar da estação do Entroncamento até à terra onde vivo. Entretanto, passei para o Uber, e o benefício, sendo também financeiro, é ainda maior ao nível da minha saúde mental. Em vez de massacrado com raivosos ou insidiosos discursos contra os imigrantes, como se fossem cartazes sonoros, passei a ser conduzido pelos próprios imigrantes, o que me permite viajar, seja envolvido num repousante silêncio, seja ir sabendo coisas sobre eles e os seus países de origem, como se nesses momentos estivesse no Bangladesh ou qualquer outro país onde não há o perigo de darmos de frente com certos portugueses.
28 outubro, 2025
A VERDADE A QUE TEMOS DIREITO
Dizer a verdade é um dever se as pessoas tiverem direito a ela, Benjamin Constant dixit. O povo tem assim os políticos que merece, digo eu.
27 outubro, 2025
O LORNHÃO
«A Senhora Bernheim olhou para Paul, durante uns minutos, através do lornhão. Ele sabia que isso significava a preparação da sua mãe para um «tema sério» e esperou.
-Agora estás com trinta anos, Paul - disse a Senhora Bernheim.
A menção dos seus trinta anos afectou-o dolorosamente, como se fossem um padecimento físico. Pois aí estavam, é claro, esses trinta anos, e ele a nada tinha conseguido chegar. (...)
- Nunca pensaste em casar? - perguntou a mãe, algo severa, continuando com o lornhão diante dos olhos.
- Onde é que há mulheres? - disse Paul.
- Há mulheres suficientes, meu menino, tens de olhar à tua volta.
Ela afastou outra vez o lornhão e deixou-o escorregar para a anca, como quem mete uma espada na bainha.»
26 outubro, 2025
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA
Mesmo à minha frente, um fedelho dos seus quinze anos atira um pacote de sumo para o chão, com a agravante de tal ocorrer perto de um caixote do lixo. Advertindo educadamente o garoto, dizendo que a rua é de todos e que todos deverão mantê-la limpa, esclareceu-me que isso era problema dele e fazia o que bem entendia. Entendimento esse que já fará dele mais um viril ultraliberal em potência para juntar ao rol dos ungidos, mais um daqueles indivíduos, portanto, que pensam que mais do que pertencerem a um Estado o que conta é o verdadeiro estado desses indivíduos.
25 outubro, 2025
CONVULSÕES
«Sobre dois estrados situados frente a frente, os músicos desencadeavam-se. Não deixavam que surgisse uma pausa. Quando um tímido silêncio começava a desabrochar, após uma banda ter acabado um tango, a outra banda caía com um jazz em cima do minuto silencioso e esmagava-o entre o tambor e o saxofone. Os pares dançavam incansavelmente.» Joseph Roth, Direita e Esquerda
No famoso livro «O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu», do não menos famoso neurologista Oliver Sacks, são apresentadas duas mulheres idosas que têm em comum ouvir ininterruptamente música dentro das suas cabeças como se tivessem um rádio lá dentro, chegando a ter dificuldade em perceber o que lhes diziam devido ao barulho. Ambas as mulheres foram vítimas de convulsões lobo-temporais, uma devido a uma trombose numa zona do lobo temporal direito, a outra por causa de um raro fenómeno epiléptico. Sem epilepsias e tromboses, o mesmo se passa hoje com o mundo da informação no qual, como servos voluntários, nos vamos despenhando, mentalmente esmagados pelos factos, sejam estes megafactos, minifactos, microfactos ou pseudofactos, um mundo de permanente ruído, sem silêncio, descanso, beleza, lugar para a imaginação ou devaneio, para o prazer de retirar a ficha da tomada eléctrica que nos liga ao mundo onde nos calhou viver. Tal como naquele casino entre o tambor e o saxofone, nós, entre o rato e o comando, vamos sendo convulsivamente informados até adormecermos de vez.
24 outubro, 2025
MEIO CAMINHO ANDADO
«Os nossos negócios são assim», disse Glanz. «O Böhlaug é um rico de coração pequeno. Veja como são as coisas, senhor Dan, as pessoas não têm mau coração, têm-no é pequeno, é um coração onde além da mulher e do filho não cabe mais nada.»
É caso para lembrar aquela divertida ideia de que, moralmente, só há dois tipos de pessoas: as más e as muito más, sendo as más aquelas que habitualmente consideramos boas. E que são, felizmente, a maioria. Aliás, a língua portuguesa tem uma expressão feliz, «Até nem é má pessoa», a qual indica quem não tem força suficiente para ser bom nem fraqueza em demasia para ser mau. Como o peão que fica parado a meio da rua, tão longe do passeio donde partiu como do que deseja alcançar. Não ser má pessoa é assim uma maneira simpática e indulgente de ser boa pessoa. O comentário de Glanz vai noutra direcção, mas só aparentemente. É verdade que apresenta um padrão quantitativo que justifica a dificuldade de sermos melhores com a pequenez do nosso músculo cardíaco. Fosse maior e seríamos melhores pessoas. Mas que de um modo realista também nos situa no nosso lugar natural, redimindo-nos do egoísmo, da indiferença face ao sofrimento alheio, da ausência de compaixão, apresentando a dificuldade em sermos melhores quase no mesmo plano da impossibilidade de estarmos em dois lugares ao mesmo tempo. E quem dá o que pode a mais não é obrigado.









































