«A Senhora Bernheim olhou para Paul, durante uns minutos, através do lornhão. Ele sabia que isso significava a preparação da sua mãe para um «tema sério» e esperou.
-Agora estás com trinta anos, Paul - disse a Senhora Bernheim.
A menção dos seus trinta anos afectou-o dolorosamente, como se fossem um padecimento físico. Pois aí estavam, é claro, esses trinta anos, e ele a nada tinha conseguido chegar. (...)
- Nunca pensaste em casar? - perguntou a mãe, algo severa, continuando com o lornhão diante dos olhos.
- Onde é que há mulheres? - disse Paul.
- Há mulheres suficientes, meu menino, tens de olhar à tua volta.
Ela afastou outra vez o lornhão e deixou-o escorregar para a anca, como quem mete uma espada na bainha.» Joseph Roth, Direita e Esquerda
A filosofia tem fama de difícil, embora popularizada com frases que brilham como néon: "Penso, logo existo", "Só sei que nada sei", ou ainda "O inferno são os outros", a qual, vinda da literatura (Huis Clos), tem a devida justificação filosófica em O Ser e o Nada. A senhora Bernheim com o seu lornhão é disso bom exemplo. Como bem poderia dizer Sartre, a senhora Bernheim olha com os olhos, mas com o lornhão impõe ao filho o seu olhar. Um olhar que faz o filho ser olhado, como uma pessoa apanhada a espreitar pelo buraco da fechadura. O seu eu inclina-se todo para fora, mas logo que o seu olhar é olhado por outro olhar, é obrigado a confrontar-se consigo próprio, revelando toda a sua vulnerabilidade. Este curto, embora tenso diálogo, é todo ele marcado pela implacável presença do lornhão: antes, durante e depois do discurso. Consigo perceber o alívio de Paul no momento em que a mãe larga o lornhão. Só que a espada já havia desferido o seu vulnífico golpe.