Na sexta-feira fiz três exames auditivos para me provarem o que há muito sabia: preciso de aparelho. Mas fatalidade que tenho vindo a rejeitar, uma clara escapadela ao choque da minha obsolescência e decrepitude. Eu sei, recusar o aparelho para fingir contornar o inexorável coloca-me no mesmo nível daqueles velhos com perucas ridículas, ou que pintam o cabelo de um preto tão carregado que transforma a cabeça numa estrada alcatroada, ou aquelas velhas que borram a cara com cremes, rimel e um baton tão forte que mais parecem saídas de uma pintura expressionista. Mas hoje voltei a ter o meu choque de realidade logo na primeira aula. Aluno: "Stor, o que significa............?" Eu: "Caramba, no 11ºano e não sabe o que significa indiferença?!" Aluno: "não, ...............?". Eu:" Indiferente!? Vai dar no mesmo, indiferença ou indiferente, qual é a diferença". Aluno: "Não, stor, ........................?". Lá tive que recorrer à estratégia habitual, aproximando-se do aluno. Eu: "Pode então repetir?" Aluno: "Inferência". Eu: "Ahhhh, inferência!". E pronto, eis o miserável pântano no qual me vou enterrando cada vez mais mais. Mas quero lá saber, continuarei a resistir enquanto puder. Há um romance de David Lodge cuja personagem principal sofre de surdez, sendo esse, aliás, o tema central do romance. Já o li há uns anos, mas lembro-me bem de ele dizer que, ao contrário da cegueira, a surdez é risível, produzindo efeitos cómicos. Quero lá saber, insisto. Sei pelo menos que a minha resistência, sendo meramente mental e não física, livra-me da triste figura dos velhos de peruca ou cabeça alcatroada, ou das velhas que parecem saídas de uma pintura expressionista.