«Henry Bloomfield observa tudo com rigor, os seus olhos decoram o mundo» Joseph Roth, Hotel Savoy
Um quase berbicacho: os seus olhos decoram o mundo no sentido de o memorizar ou decoram o mundo no sentido de o embelezar? Quase berbicacho pois bem sei que surge no primeiro sentido. Aqui, nem sequer importa como está no original alemão, há, sim, que aproveitar esta feliz homonímia que pode suscitar confusão, ao contrário de outras como o canto da ave ou o canto da sala, ainda que o senhor Houaiss me explique que decorar (memorização) vem do latim cor, cordis, pondo o coração como sede da memória, e decorar (ornamentação), deve-se a decus, oris, ornato, enfeite. Portanto, raízes bem diferentes que dão origem a sentidos diferentes.
Acontece que os dois olhares, o que decora para memorizar e o que decora para embelezar, podem ser aglutinados, mesmo que o desígnio estético do segundo possa não existir no olhar neutro e frio de quem memoriza como quem lida com símbolos químicos ou capitais de países. Acontece que estes são entidades mentais, o que não acontece com uma sala ou uma paisagem. Quem usa clinicamente o olhar para memorizar uma sala ou uma paisagem, fá-lo com o mesmo olhar atento e estudioso de quem ornamenta uma sala, ou percebe o que há de ornamental numa paisagem. Um olhar preso a todos os pormenores particulares ou combinatórios do que há diante dos olhos. Quando, no olhar da arquitectura, acaba a técnica para dar lugar à estética, ou vice-versa? A língua alemã tem poderes fantásticos para se poder brincar com as palavras, não sendo isso razão para esquecermos os da nossa.