15 outubro, 2023

ROMÃS

Não tenho vícios que me invoquem fraquezas da alma ou do corpo, mas deixo-me levar por suaves e até agradáveis quedas, algumas delas pautadas pelo ritmo das estações do ano. Por ora, são as romãs e os dióspiros, cuja força de gravidade me faz descer ao mercado. Entretanto, calhando ontem atravessar uma daquelas antigas ruas pouco habitadas e frequentadas, onde o tempo parou, e na qual eu há muito também não passava, fui dar com uma enorme romãzeira, repleta de portentosas romãs, algumas abertas, exibindo orgulhosas o seu rutilante vermelho. Tratando-se de um terreno abandonado, logo adivinhei o seu breve apodrecimento no chão, homenageadas apenas por mosquitos, em vez de colorirem de Outono uma cozinha e de cujas bagas encherem uma tigela para júbilo de quem as prepararia. E senti pena. Não de mim mesmo por não poder comê-las, até porque romãs não me faltam, mas das próprias romãs por não poderem ser comidas. Por terem nascido, medrado, tornarem-se belas e cheias de sumo, para acabarem apodrecidas num chão que não as merece. Como uma sonata de Schubert cuja pauta tivesse desparecido e nunca viesse a ser ouvida, ou uma tela de Caravaggio que ficasse esquecida entre destroços numa húmida e obscura cave. Infelizes ouvidos, infelizes olhos pelo que perderam, mas também infelizes obras, sem felizes ouvidos e olhos para elas. As romãs não o sabem, mas existem para dar beleza aos olhos, sabor às bocas e vitaminas ao corpo. Não cumprir esse destino é uma tragédia que amputa uma linha antes de terminar num horizonte que glorifica a sua existência. As tragédias não se aplicam apenas a seres humanos, foi isso que ontem percebi ao ver aquelas belas e abertas romãs implorando-me para as levar e eu, derrotado herói, sem nada poder fazer para as salvar.