12 setembro, 2023

RELER

Ninguém come apenas uma vez na vida uma comida de que gosta, só porque já a comeu uma vez. Isso, porque o prazer dessa primeira vez não substitui o prazer das seguintes. O mesmo acontece com uma música que se ouviu, um quadro ou um filme que se viram, uma cidade aonde se foi ou uma pessoa com quem se gostou de conversar. Porquê, então, só ler uma vez um livro do qual se gostou bastante? Isso fará sentido se a leitura for apenas funcional: a trama, quem são as personagens, onde e em que tempo decorre a acção, se A casou com B e se morreu no final, quem é o assassino. Mas se olharmos para o intrínseco prazer da leitura como o da música ou da pintura, porque não repetir esse prazer? Por isso é bom ter tanto de releitor como de leitor. Claro que havendo tantos livros que ainda não se leram, não se pode dedicar o tempo só a reler. Mas a ideia não é reler um livro inteiro, apenas pedaços cujo rasto se vai apagando com o tempo como o rasto de um pastel de nata após minutos, e isso enquanto se faz uma ou duas novas leituras. Mesmo que não se esqueça o eixo narrativo dos livros já lidos, a volúpia literária de certas passagens, a riqueza psicológica ou transmissão de ideias noutras, só é recuperável com a sua leitura efectiva e não com a reconfortante consciência de ter lido o livro como a de quem despachou uma tarefa. E até se podem descobrir coisas que escaparam na primeira leitura, pois continuando o livro a ser o mesmo, nós já não o somos quando a ele regressamos, como a água do rio onde nos banhamos segunda vez. Daí ser possível reler infinitamente os mesmos livros com a mesmo prazer da primeira vez que foram lidos. Ter esse livro para ler e, contrariamente à liberdade invocada pelo poeta, fazê-lo mesmo, tornando-se num dever que dá mesmo muito prazer cumprir.