19 setembro, 2023

OUVINTES E LOCUTORES

Há muitos anos, uma pessoa que foi a minha casa, reparando na quantidade de cd's na estante (elevada segundo o seu padrão, e o mesmo acontecendo com outros em relação aos livros, o que me deixa sempre desconsolado e triste), referiu que não tinha o hábito de os comprar, mas que gostava muito de música, simplesmente deixando os seus critérios de audição nas mãos dos locutores de rádio, rádio que ouvia no carro, em casa e durante o trabalho, provando assim gostar mesmo muito de a ouvir. Foi das coisas mais assustadoras que ouvi em toda a minha vida, contribuindo ainda mais para isso o argumento apresentado: se eles, os locutores, são especialistas em música, se percebem de música como mais ninguém, então, ouvir a que criteriosamente seleccionam para nós significa ouvir a música que se deve ouvir. Tão assustador que, tantos anos depois, não pude esquecer, ressoando ainda a metáfora das mãos quase transformada numa catacrese, uma metáfora que deixa de o ser por se tornar a comum (ou mesmo única) maneira de designar uma coisa. E, tantos depois, ainda sinto um arrepio na alma só de pensar nisto.