20 setembro, 2023

ALMAS

Lembro-me bem de aparecer essa maravilha da sofisticação tecnológica que foi o CD, trazendo leveza aos discos e sem os ruídos do corpo do anterior vinil. Como me lembro do não menos sofisticado DVD, também livre do peso e da degradação visual e sonora da cassete de vídeo. Lembro-me disto numa FNAC onde o DVD já desapareceu por completo, enquanto alguns CD de música clássica e de Jazz vão resistindo nas prateleiras como cabelos perdidos na brancura da banheira após o duche. Claro que não é o fim da música nem do cinema, apenas a morte física da música ou do cinema, tornadas almas puras, sem o corpo e a roupa que despíamos para as ouvir e ver, e de novo vestir para regressarem à prateleira. Filmes e músicas que se tornaram imateriais como anjos, esvoaçando levemente pelo sobrenatural e etéreo espaço do Spotify e do streaming sem lhes tocar e sentir como nossos. Há qualquer coisa de monástico, ou de mais platónico do que aristotélico, neste despojado universo no qual as música e os filmes passam levemente por nós, deixando-nos as mãos silenciosas diante da ausência do seu corpo antes e depois de os vermos e ouvirmos. Há um texto de Platão, Górgias, em cujo final é apresentado um mito no qual se fala da decisão de Zeus de que as almas sejam julgadas depois de mortas, sem corpo, roupas e ornamentos que possam dissimular a sua verdadeira natureza. Talvez a tecnologia que desmaterializa cada vez mais o mundo, e concretamente o computador que concentra toda a realidade no seu espaço virtual, desde o cinema à música, passando pela fotografia, a pintura, o livro, o jornal, o calendário, a epistolografia ou a ida ao café depois de jantar, se inscreva na matriz cristã que está na origem da nossa cultura, tornando-nos cada vez mais almas nuas no exíguo espaço da nua cela. Platonismo para o povo, chamou-lhe Nietzsche, que gostava de Itália e da montanha suíça para encher o corpo de realidade.