05 setembro, 2023

ESPELHOS

Torres Novas, 2023

Num pequeno romance chamado "A Lentidão", Milan Kundera compara o rei checo Vaclav (sec. XIV) com Carlos, agora rei britânico, na altura apenas príncipe. Com uma certa graça, explica que enquanto o primeiro conseguia andar, incógnito, pelas tabernas no meio do povo, Carlos, nem numa floresta virgem ou escondido num bunker consegue escapar aos olhos do mundo. Partindo desta comparação, direi que, hoje, todos queremos ser Carlos, alcançar a glória de Carlos que, mesmo sem nada fazer, tem os olhos do mundo sobre si. Houve um tempo em que se chegava a casa para, na sombra,  se sentar no sofá a ver televisão, assistindo ao espectáculo do mundo e dos seus protagonistas. Hoje, trocando-se cada vez mais a televisão pelas redes sociais, chega-se a casa sobretudo para especular. Começa-se mal se entra no elevador, neste caso fisicamente, mas continuando depois, no recato do lar, através de um computador ou do telefone, onde quase tudo o que se faz serve para especular. Não nos vemos directamente uns aos outros, andando antes meio perdidos entre os nossos reflexos como nas salas de espelhos das antigas feiras.