21 setembro, 2023

ESPECTROS

A rua onde eu trabalho chama-se Francisco Sá Carneiro. Talvez pelo facto de estar tão habituado a ela como rua onde trabalho e onde diariamente passo mesmo sem trabalhar, nunca pensei nela associada à pessoa do nome. Mas olho por mero acaso para a parte superior do edifício e leio as garrafais letras "Aeroporto Francisco Sá Carneiro", e o que me vem à cabeça não é um simples nome de aeroporto. Como numa sessão de espiritismo, sou visitado pelo rosto e a voz de alguém, amado por uns e odiado por outros, que via diariamente no telejornal e enchia as ruas através de cartazes eleitorais, de alguém cujo velório e funeral, num tempo em que ainda não havia canais de notícias, teve uma transmissão ininterrupta durante dois dias. E que eu, apesar de nunca ter sido do seu partido, fui ver discursar aqui na terra, num enorme cinema a abarrotar só para o ver e ouvir. Enfim, uma pessoa quase familiar. Mas o que verá um jovem diante do nome "Francisco Sá Carneiro", seja num aeroporto, rua ou praça? Há-de ser o mesmo que vê quando passa na rua Almirante Reis, Elias Garcia, Luciano Cordeiro, Serpa Pinto, Magalhães Lima, Costa Cabral ou no Saldanha. Ou seja: nada. Simples nomes, tão cheios de significado como os indicativos números das ruas de Espinho ou Manhattan, tão impessoais como o "+351" de Portugal ou o "+49" da Alemanha. E de repente percebi o que sentiria um contemporâneo do Almirante Reis ou de Fernandes Tomás se agora ressuscitasse e se apercebesse da ignorância a respeito dessas figuras outrora tão reais. Sentir-se-ia um espectro entre vivos, o mesmo que eu senti diante de toda aquela gente que também por mero caso olhou para aquele nome que ali está para identificar o aeroporto aonde chegam e de onde partem.