07 setembro, 2023

A CLAREIRA

Recordar a festa de aniversário dos 7 anos, estar na cama a ler aos 12,  uma manhã de praia aos 15 e a primeira aula como professor, faz tudo parte da memória episódica. O que vai emergindo na minha consciência são acções ocorridas no espaço e que por isso não podem coincidir na minha tela mental. Não consigo estar ao mesmo tempo a pensar na festa de aniversário e na primeira aula, a invocação de uma implica o apagamento da outra. Paul Klee, filho de um professor de música, casado com uma pianista, tocando violino uma hora por dia durante anos, estava tão ligado à música que hesitou entre esta e a pintura. Esta passagem do seu diário ajuda a entender a sua escolha: «A pintura polifónica é superior à música porque o temporal é aí mais espacial. A noção de simultaneidade revela-se aí ainda mais rica». Faz sentido. A música é um entrelaçamento de sons e silêncio dispostos num tempo sem espaço, enquanto a pintura é um entrelaçamento de formas e cores dispostas temporalmente no espaço. Daí que na música cada som morra ao ser substituído por outro, uma sonata se reduza a nada logo que deixa de ser tocada. O tempo na música sofre, pois, como sugere Klee, de um problema de espaço. O que já não acontece com a pintura, seja mais figurativa ou mais abstracta, ao reduzir a multiplicidade da consciência temporal a uma simples imagem. Dá-se, assim, um fenómeno curioso: o que acontece na nossa tela mental onde se projecta a memória episódica através de pequenos clarões que se acendem e apagam, está mais próximo da música (ou mesmo do literário fluxo de consciência), onde não há telas, apenas sons que também se acendem e apagam, do que na tela física da pintura, onde o espaço e o tempo se entrelaçam, podendo-se assim assistir, em simultâneo, a diferentes memórias. Já não como clarões, antes sólidas imagens reveladas na clareira de um bosque cerrado, para se prenderem tão firmemente aos nossos olhos como a duas mãos.