08 setembro, 2023

VOZES DO SILÊNCIO

Ninguém dispõe aleatoriamente os livros nas prateleiras. Mas há excepções: a pintora Maria Helena Vieira da Silva dispunha-os por cores, fazendo com que literatura, ensaio, sociologia, romance, poesia, jardinagem, enciclopédia, arte, português, russo, contemporâneo, medieval, Ionesco ou Balzac, tudo isso perdesse significado, podendo-se assim juntar a Ilíada e um Manual de Primeiros Socorros só pelas cores, embora também não fosse descabido pelos respectivos conteúdos. Descubro algo parecido nas conversas quando por acaso duas pessoas se encontram na rua ou no supermercado, ou mesmo por vezes quando fazem por se encontrar. A única diferença é serem sons em vez de cores, cujos timbres, mais sopranos ou baixos, mais tenores ou barítonos, têm muito de cor, ou seja, mais quentes, frios, metálicos, pregnantes, leves, baços, cristalinos. As conversas estão lá, como os conteúdos dos livros na prateleira, mas o que só mesmo conta são os meus sons para lhe provar que tenho a consciência de ele estar à minha frente, e os sons do outro para me provar que tem a consciência de que estou à frente dele, numa espécie de "You Jane, me Tarzan". Daí que talvez não fosse necessário falar, havendo formas mais simples de comunicação, como as cores numa estante. As pessoas diriam "Olá!", e em vez de falarem, poderiam assobiar, chilrear, uivar (como no O Último Tango em Paris), bater palmas, dar saltos, fazer coreografias ou caretas, ou até mesmo ligarem o cronómetro do telemóvel para ficarem apenas a sorrir durante quatro minutos e trinta e três segundos. Depois era só acenar com o braço e ir cada uma para seu lado até ao encontro seguinte, algures nas prateleiras dos chocolates, legumes ou detergentes, tão silenciosamente coloridas como as dos livros ou uma conversa entre duas pessoas.