31 julho, 2023

A PORTA ESTREITA

Resolvi ver um telejornal, o que há muito não fazia, e logo me arrependi pelo ruído que fazia. Façamos então o seguinte: se houver alguma coisa de especialmente interessante no mundo, avisem-me. Mas nada menos que assuntos como foram a queda do Império Romano, o fim da viagem de circum-navegação, o Terramoto de 1755 ou a Revolução Francesa. Ou seja, nada menos que coisas como a descoberta da Atlântida enquanto consequência da ebulição global, o Arouca ser campeão, uma nova religião fundada por um robot com arroubos místicos devido a um defeito de fabrico e cujo evangelho foi escrito pelo ChatGPT, o fim do capitalismo, a CP conseguir estar um mês inteiro sem uma greve, um novo livro de Houellebecq no qual o sexo esteja completamente ausente, a reposição da monarquia em Portugal, que passou a fazer parte de uma União Ibérica com uma Espanha que entretanto se tornou uma república, a descoberta de um cabelo de Bach, tornando possível um clone seu, a criação laboratorial de um tipo de açúcar que, em vez de engordar, emagrece, Elvis Presley ter desta vez  aparecido mesmo, tanto podendo ser no deserto do Arizona, de guitarra nos braços e olhar ausente a tocar músicas do Ry Cooder ou, o que vai dar quase no mesmo, numa tabacaria de Moscavide a comprar uma raspadinha, finalmente, e apesar da sua absoluta inverosimilhança, a escolha do novo aeroporto ainda antes do fim do mundo, o qual, porém, não seria novidade por já ser esperado pelos primeiros cristãos, o mais excitante que havia para esperar num tempo em que ainda não havia aeroportos e nem sequer trotinetas. Menos que isso, deixem-me então sossegadinho com as minhas irrelevâncias que, não servindo para abrir ou fechar telejornais, abrem-me a porta para me fechar num mundo de silêncio que inclui ouvir música e outras inutilidades afins que libertam a bela alma dos ruídos e manchas gordurosas do mundo dos telejornais que, consta por aí, é o mundo real, mas onde não quero viver.