Toda a gente com uma certa idade se lembra daquela cola tão boa que até colava cientistas ao tecto. Uma das coisas que me agradam na publicidade é a sua honestidade. Grande parte dela joga com um exagero, um irreal ou mesmo absurdo, nada compatíveis com as exigências racionais do ser humano. Mas, tal como no cinema, sabe que nós sabemos e que até gostamos disso. Mas o que se passa com o rótulo da água São Martinho é outra coisa. Por cima da ficha técnica, fala de São Martinho, cuja pureza associada ao poder da água da nascente, cria a mais natural das águas. São Martinho foi um soldado romano do século IV, convertido ao cristianismo, sendo, ao que parece, muito boa pessoa, tão boa que ganhou o estatuto de santo. Há várias terras em Portugal que têm o seu nome, sendo a mais conhecida São Martinho do Porto, noutros tempos também conhecida por bidé das marquesas. No concelho de Fafe há uma freguesia chamada Silvares S. Martinho, de onde é oriunda a água de São Martinho. Daí o seu nome, em vez de Luso, Água das Pedras ou Penacova.
Não se trata, neste caso, de uma assumida brincadeira, exploração do humor ou do absurdo para tornar um produto mais popular e objecto de desejo, mas de um texto argumentativo, cuja conclusão é a qualidade de uma água, para a qual contribui a pureza do santo medieval. Juro nada ter contra este absurdo argumentativo, nem se trata de uma birra. Pelo contrário, considero até bastante pedagógico para lembrar que é assim que por vezes funciona um certo tipo de discurso, seja na religião, seja na política. Acontece que nas sociedades onde a religião deixou de ter peso social, moral e ideológico, tornou-se inócuo. Mas o mesmo não acontece num plano político. Há políticos que apresentam argumentos deste teor para seduzir, convencer e prender eleitores aos seus programas. E as pessoas, ou porque distraídas, ou porque precisam de confirmar as suas crenças, acreditam como se estivessem a ver mesmo cientistas colados ao tecto ou o poder do santo medieval na água que bebem. Tal como a água, o discurso político pode ser mais puro ou impuro. E, tal como a água impura, fazer mal à saúde, neste caso das sociedades, como demonstra a história, o presente, e talvez também o futuro. Pois o discurso será tanto mais natural, quanto maior a sede de quem o ouve.