Boa velha, que tens? Soa a tua voz a uma voz de partida. Casa deserta, os filhos dispersos, o marido morto. E a tia Dulce e as criadas de outrora. Já sei que não estás doente, e para que é precisa a doença? A doença é um pretexto, tu não precisas de pretextos.
Há sempre um momento em que o pintor ou o escritor percebem que um quadro ou um texto chegaram ao fim. Também Alberto Soares percebe que a vida da mãe, que visita na sua velha casa beirã, chegou ao fim. Tal como o pintor ou o escritor, que poderiam acrescentar mais uma pincelada ou frase, não estando a mãe doente, também pode continuar a ter mais dias seguintes, fazendo a lida da casa, tratando de um cão ou de um gato, comendo, dormindo e acordando, enfim, pensar na vida, sobretudo a que passou. O que o filho quer dizer é que a mãe nada mais tem para acrescentar, como pinceladas ou frases que irão cair em saco roto. Ele não o diz, mas talvez Alberto possa pensar que a mãe poderia fazer como Sócrates: aprender filosoficamente a morrer. No seu caso, aprender a libertar-se de um mundo com o qual já não se identifica, para o qual já não se sente feita, ou o qual deixou de ser feito para si, tanto faz. Porque a sua ordem desmoronou-se, o seu sentido corrompeu-se, a solidez que sustentava um quotidiano feito de pequenos nadas, evaporou-se. Daí não precisar da doença como pretexto para a chegada da morte, bastando a sua vida presente para a justificar. Compreende-se e não pode deixar de ser triste. Verdadeiramente trágico é quando se atravessa toda uma vida na qual não há maior pretexto para a morte do que ela própria. Trágico, não só para cada um tomado individualmente, mas mais ainda pela sua desoladora expressão estatística.