A última das sete secções em que está dividida a temporária de Lucien Freud no Thyssen-Bornemisza (até dia 18 deste mês), é composta por uma série de fotografias de David Dawson sobre o estúdio do pintor, as quais revelam a sua esmagadora desordem. Um caos de tintas, pincéis, panos sujos, uma verdadeira ode à fealdade que faz um quadro de Pollock parecer uma manhã de Primavera com os passarinhos a chilrear. Os bastidores da pintura de Freud exibidos por Dawson são os mesmos expostos por Inocêncio III quando dizia "Tu, homem, andas pesquisando ervas e árvores; estas, porém, produzem flores, folhas e frutos, e tu produzes lêndeas, piolhos e vermes; daquelas brotam azeite, vinho e bálsamo, e do teu corpo escarros, urina e excrementos". Não se pode dizer que esteja a mentir. É verdade, o corpo humano é uma fábrica que trabalha 24 horas do dia para produzir até bem mais do que isso. O que se pode agora perguntar é porque, mesmo sendo isso verdade, prefere relevar esse macabro interior em vez da beleza exterior do corpo, da sensualidade das suas partes, também reais e verdadeiras, que vão da voz ao sorriso, passando pela pele e pela carne. Fá-lo para legitimar a sua moral, o seu ódio ao que implique uma valorização do corpo, da beleza física, da sexualidade, dos prazeres e alegrias terrenas. Ele vê o que quer ver e precisa de ver, para assim nos convencer a desviar o olhar para longe como quem acaba de descobrir um corpo em adiantado estado de putrefacção.
Isso impede, claro, uma analogia com as fotografias de Dawson. O contexto é outro, como outra é a sua intenção. Seja como for, as suas fotografias também desviam os olhos da pintura de Freud, dirigindo-os para os seus bastidores, onde funciona uma complexa máquina que, levantado o pano, permite ao espectador assistir aos diferentes cenários da representação. Escolhi esta fotografia pelo seu forte poder sugestivo. Porque vemos o pintor, na sua quase pose de Bronze de Artemísio, entre o caos e bem visível sujidade dos pincéis, e o invisível quadro. Nós sabemos que o quadro, já finalizado, é resultado deste caos e sujidade. O atelier de um pintor não é o laboratório de um cientista, onde tudo tem de estar racionalmente organizado. Ainda assim, se o fotógrafo nos desse a ver o caos do atelier lado a lado com o quadro que depois vemos orgulhosamente exposto na parede, ainda para mais num pintor figurativo como Freud, seria difícil evitar uma certa perplexidade ou desconforto. Podemos com isso satisfazer a nossa curiosidade. Interessante, diríamos também. Mas é a velha história da flor explicada pelo estrume. Que, surgindo nesta versão de um modo inócuo, deixando incólume o nosso olhar estético diante do quadro, em muitas outras coisas da vida pode ser o primeiro passo para a queda. Não temos que saber tudo, havendo mesmo coisas que devemos não saber. Basta-nos a alegria e o prazer pelo que a vida quis pôr diante dos nossos olhos.