19 maio, 2023

CLUBE DOS POETAS MORTOS

 

Porto, 2023

O PÚBLICO deu a notícia da morte, e passo a citar, do "poeta, tradutor e médico José Alberto Oliveira". Trata-se de um poeta que também era médico, ou de um médico que também era poeta? Não sendo incompatíveis, são bastante distintas, e a preponderância de cada uma dependerá de quem, ou o conheceu através dos livros, e que até pode ignorar o médico, ou de quem, no consultório, o viu de bata, sem talvez fazer ideia de que quem lhe media a tensão também escrevia poemas. Seja lá o que for, trata-se de uma associação bem diferente da que encontramos neste advogado e poeta que dá nome a uma rua do Porto, pois um homem do século XIX ser apresentado como advogado e poeta, ou médico e poeta, nada tem que ver com um do século XXI. Claro que nos tempos de Garrett, Camilo, Soares de Passos, Tomás Ribeiro, Eça de Queiroz, Antero de Quental, Ramalho Ortigão, António Nobre, Camilo Pessanha, Guerra Junqueiro, Afonso Lopes Vieira, António Feijó, Teixeira de Pascoes, Alberto de Monsaraz, João de Deus,  Florbela Espanca, entre tantos outros, vir do mundo das Leis não era nem condição necessária, nem suficiente, para ser poeta, tal como ser poeta não era condição necessária ou suficiente para ingressar no mundo das Leis. Mas era uma associação natural e previsível. Manuel Alegre, António Osório, Pedro Tamen, Manuel António Pina, Mário Cláudio, serão ainda vestígios desse tempo. Pode soar cómico, mas o advogado e político Dias Loureiro ainda escreveu poemas, e uso o pretérito por presumir que hoje os seus níveis de concentração para o exercício da poesia estejam mais reduzidos. 

O que hoje já não acontece. Porquê? Não faço ideia pois não sou historiador e só agora resolvi dedicar uns minutos ao assunto. Mas, com uma forte possibilidade de estar enganado, avanço com uma hipótese. A causa não deve ser procurada no mundo das Leis em particular, que de poético e literário nada tem, mas na importância, tanto simbólica como efectiva, da cultura e da Literatura em certos meios sociais, nos quais o curso de Direito ou Medicina era, para muitos, o seu destino natural. Importância que tanto se prova com a enorme quantidade de poetas e escritores que foram advogados e médicos, como pela enorme quantidade de advogados e médicos que, não sendo poetas nem escritores, liam e conheciam bem os terrenos literários, como se fosse uma natural disposição devido à sua profissão. O que hoje já não acontece em virtude de serem profissões que deixaram de estar ligadas a elites sociais ou a quem teria a pretensão de lá chegar, tornando-se apenas carreiras técnicas nas quais desapareceu o peso de uma cultura humanística. Daí o facto de haver tanto advogado e médico quase tão ignorantes e incultos como um operário da Revolução Industrial. E daí também o facto, excepcional, de José Alberto Oliveira ser médico e poeta (como Miguel Torga, Lobo Antunes, João Luís Barreto Guimarães, ou Jorge de Sena, que era engenheiro) sem que haja qualquer ligação social e psicológica entre si. Por apenas ter sido o seu destino individual, e não porque a história o exigia.