Porto, 2023
Pergunta tão franca e directa merece resposta franca e directa: o próprio povo. E se o povo não tem medo de si próprio pois bem deveria ter. Não há pior poder do que o popular. Não por acaso é a democracia representativa o melhor sistema de poder, o qual, apesar de pensado em nome do povo, traça uma linha a partir da qual o povo deve ficar calado no seu popular recato. Do mesmo modo que o melhor poder é também o que ajuda o povo a ser menos povo, quer dizer, menos ignorante, menos bronco, a falar menos alto, a ter menos mau gosto e a deixar de usar perfumes que pareçam desodorizante de sanita. Quando no discurso de Gettysburg, Lincoln fala do governo do povo, pelo povo e para o povo, quando Rousseau fala da Vontade Geral ou Hegel do Volksgeist, falam de uma abstracção política, jurídica ou filosófica. E mesmo quando Delacroix põe a Liberdade a levar o povo atrás de si, embora estejam lá pessoas do povo, como de resto nas ruas de Lisboa ao lado de Álvaro Pais quando este se põe a gritar "Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestre que matam sem por quê", é na burguesia que estará a pensar. Burguesia essa que, e só mesma ela, pode salvar o povo de si próprio para deixar de ser povo. Daí que o povo, para além de si próprio, deva também ter medo dos políticos que descem ao povo, para que este, como diria Karl Kraus, imagine ser tão esperto quando o demagogo quando este se faz passar por tão estúpido como o seu auditório. E esses, à esquerda e à direita, enquanto altifalantes do povo, não faltam por aí e quanto mais populares mais anti-populares serão. Chamem-se ou não Vox.
