18 maio, 2023

ASCENSÃO

Hoje é o feriado da Ascensão na minha terra, dia de ir para o campo apanhar a espiga. Espiga ainda haverá. Mas pouco espigadas andam as almas bucólicas, desanimando com isso os corpos que, entorpecidos, penderão mais para o centro comercial nos quais, verdade seja dita, como diria Alberto Caeiro, haverá sempre uma loja de flores. Há anos, contava uma aluna que, segundo os pais, a sua irmã havia sido feita debaixo de uma oliveira. Achei a história encantadora e não apenas por ser apreciador de oliveiras. Pode parecer indiferente o sítio ou o modo como somos feitos, se mais ortodoxo como uma cama, se menos convencional como o chão da sala, um parque de estacionamento ou mesmo um elevador romanticamente forçado a parar entre dois andares. Mas não é bem assim. Basta pensar em Tristam Shandy, que deveu a sua natureza ao facto de, no vital e complexo instante em que o pai, generosa e afincadamente, transmitia a substância homuncular à genetriz, esta perguntar se não se tinha esquecido de dar corda ao relógio, influenciando assim dramaticamente os espíritos vitais que se transfusionam de pai para filho.

Quem não gostaria de ter sido feito debaixo de uma oliveira, como a irmã da minha aluna, com uma luz impressionista e a 6ª Sinfonia a ecoar na cabeça, rivalizando com o paganíssimo chilrear dos passarinhos? Há na cama pouco que ver com o milagre de uma vida que começa. Será lugar ideal para nascer, adoecer, convalescer, morrer, ler, meditambundar em dia de chuva e, já agora, para dormir, de preferência o sono dos justos. E não obstante nada ter contra os amantes elegerem a cama para se dedicarem aos sagrados rituais que honram o deus do amor, dar origem a um ser humano é assunto demasiado grande para o espaço limitado de uma cama entre quatro paredes. Haverá início de vida mais auspicioso do que ser feito sob invocação dos espíritos vitais do céu e da terra, das flores e das árvores, das aves e dos insectos, do Sol e do vento, respirando o ar puro do campo? Não faço ideia de quem seja a irmã da minha aluna, mas há-de ser uma rapariga abençoada por deus.