28 maio, 2023

CINZAS

Bate tudo certo. Num mundo em que, vivos, as relações caminham cada vez mais no sentido da virtualidade, a cremação passou a ser o nosso destino natural depois de mortos. Quando as relações eram físicas, era também um corpo físico que descia à cova para lá eternamente repousar. Quando ainda hoje se vai a um cemitério para visitar uma pessoa que lá desceu inteira para com ela conversar um bocadinho, deixar-lhe umas flores ou limpar-lhe a casa, é ainda de um corpo que se trata. Quando Hamlet vê o coveiro a tirar uma caveira, ocorre-lhe pensar que teve uma língua lá dentro e que pode ter sido a cabeça de um político ou de um cortesão. Diante doutra, que pode ter sido a de um advogado. E perante o crânio de Yorick sente-se legitimado para dizer "Ah, pobre Yorick! Eu conheci-o". Ora, como é possível dizer "Conheci-o", diante de uns gramas de cinza que se esboroam com um ligeiro sopro? Daí, insisto, bater mesmo tudo certo: um ser humano é socialmente cremado ainda em vida para, depois, quando já reduzido a um pacote com cinzas, permitir a  reconfortante sensação de que nada mudou e, como Hamlet, toda a gente poder convictamente dizer que o conheceu.