02 maio, 2023

BEM-VINDO MR. CHANCE

Alma Mahler tinha um problema de audição que fazia com que inclinasse ligeiramente a cabeça, movimento que lhe dava uma especial graciosidade. O médico madrileno Gregorio Marañon encontra-se em Genebra com M. Bouvier. Em carta a uma amiga, descreve Bouvier como homem elegantíssimo e em que até mesmo um defeito no olho era aproveitado para um monóculo que casava lindamente com o seu guarda-roupa. Agora no campo da ficção (e o que a distingue da realidade?), Alberto Soares, recordando os dias em que ensinava Latim a Sofia, para cujas declinações revelava pouca inclinação, diz que ela tinha "um modo gracioso de se enganar, [sentindo] obscuramente que os erros é que estavam certos".

Muito bem, fazer dos defeitos qualidades, das fraquezas forças, eis uma estratégia mais que legítima na luta pela afirmação de cada um, a sua autoconservação e sobrevivência social. Há também animais que caem mais nas nossas boas graças do que outros, e nós, uns com os outros, não divergimos muito dos animais, até porque também o somos. E no que diz respeito à falta de ideias? Quando, em vez de um jardim, o interior mental da caixa craniana não passa de um deserto? Também não é difícil sobreviver ou até mesmo vencer. Basta dizer umas coisas sem sentido e humedecidas com um inebriante perfume esotérico, para criar uma sensação de densidade e profundidade intelectual diante da qual nos sentimos como pobres mineiros sem picaretas e outras ferramentas para lá podermos chegar.