Há dias, fazendo o mesmo que o Bexiguinha da Aparição, mastigar palavras, fui acerbado pela estranheza fonética da palavra carroça. Estranheza que não está desligada de uma cada vez maior estranheza semântica. Quando dantes passavam carroças à minha porta, não me sentia desafiado pela palavra, tal como não me sinto hoje com as palavras carro, carruagem, carrinho, carrão, ou mesmo carrossel. Já agora, não deixa de ter graça a palavra espanhola carretera, uma vez que a habitual palavra para carro é coche, que para nós já é peça de museu. Nós, sim, poderíamos ter carreteira, em vez de estrada. Temos, mas com outros significados. Passa-se cada vez mais o mesmo com a palavra trabalhador. Uma igual estranheza à qual não será indiferente uma também estranheza semântica que não acontece ainda com trabalho, trabalhar ou trabalheira. E digo ainda pois o futuro a Deus pertence e algo me diz que a palavra trabalho já está em vias de se transformar numa espécie de trambolho social e ideológico.
As pessoas ainda trabalham e vão para o trabalho trabalhar. Mas, à excepção de dirigentes sindicais, comunistas, ou alguns operários da velha guarda, quem ainda se sente trabalhador, não como adjectivo (aquele aluno é muito trabalhador, o meu genro é muito trabalhador) mas como substantivo ou categoria ontológica? Na faculdade fiz um trabalho sobre Marx para a cadeira de Filosofia Social e Política. Lembro-me bem de passar a vida a ver a palavra trabalhador. Mas isso era no século XIX e nós estamos no século XXI, estando a desaparecer os últimos trabalhadores tal como há o Último Homem, de Nietzsche. Acordámos hoje para recebermos um ameno e primaveril dia de sol. Isto, enquanto categoria meteorológica para quem está a banhos na praia ou numa esplanada, ou categoria poética para quem está no campo ou num jardim. Já no que ao simbolismo do dia diz respeito, trata-se de um dia crepuscular. Não dos deuses mas dos trabalhadores, uma versão sindical do Último Homem, embora sem a sombra de Wagner por perto, até que venha um novo amanhecer que ainda ninguém sabe bem como vai ser. Virada a página do 1 de Maio, talvez venha a ser substituída por um 2 de Maio, sabe-se lá se ainda com alguma coisa para comemorar e enaltecer.