01 maio, 2023

2.0 DE MAIO

Há dias, fazendo o mesmo que o Bexiguinha da Aparição, mastigar palavras, fui acerbado pela estranheza fonética da palavra carroça. Estranheza que não está desligada de uma cada vez maior estranheza semântica. Quando dantes passavam carroças à minha porta, não me sentia desafiado pela palavra, tal como não me sinto hoje com as palavras carro, carruagem, carrinhocarrão, ou mesmo carrossel. Já agora, não deixa de ter graça a palavra espanhola carretera, uma vez que a habitual palavra para carro é coche, que para nós já é peça de museu. Nós, sim, poderíamos ter carreteira, em vez de estrada. Temos, mas com outros significados. Passa-se cada vez mais o mesmo com a palavra trabalhador. Uma igual estranheza à qual não será indiferente uma também estranheza semântica que não acontece ainda com trabalho, trabalhar ou trabalheira. E digo ainda pois o futuro a Deus pertence e algo me diz que a palavra trabalho já está em vias de se transformar numa espécie de trambolho social e ideológico.

As pessoas ainda trabalham e vão para o trabalho trabalhar. Mas, à excepção de dirigentes sindicais, comunistas, ou alguns operários da velha guarda, quem ainda se sente trabalhador, não como adjectivo (aquele aluno é muito trabalhador, o meu genro é muito trabalhador) mas como substantivo ou categoria ontológica? Na faculdade fiz um trabalho sobre Marx para a cadeira de Filosofia Social e Política. Lembro-me bem de passar a vida a ver a palavra trabalhador. Mas isso era no século XIX e nós estamos no século XXI, estando a desaparecer os últimos trabalhadores tal como há o Último Homem, de Nietzsche. Acordámos hoje para recebermos um ameno e primaveril dia de sol. Isto, enquanto categoria meteorológica para quem está a banhos na praia ou numa esplanada, ou categoria poética para quem está no campo ou num jardim. Já no que ao simbolismo do dia diz respeito, trata-se de um dia crepuscular. Não dos deuses mas dos trabalhadores, uma versão sindical do Último Homem, embora sem a sombra de Wagner por perto, até que venha um novo amanhecer que ainda ninguém sabe bem como vai ser. Virada a página do 1 de Maio, talvez venha a ser substituída por um 2 de Maio, sabe-se lá se ainda com alguma coisa para comemorar e enaltecer.