26 maio, 2023

A VOZ NA CONSCIÊNCIA

Toda a gente que vive nesta zona, e muita fora dela, conhece um popular restaurante chamado Cu da Mula. E muito justamente, já que a comida e o serviço são de qualidade. É tão normal dizer ou ouvir dizer que se foi ou se vai ao Cu da Mula como a qualquer outro restaurante, ouvindo-se o seu  nome com o mesmo ar sério de quem o invoca. Mas lembro-me da primeira vez, há muitos anos, em que ouvi falar dele, não ficando indiferente à carga escatológica do nome. Sem dúvida popular num país de restaurantes com nomes tão populares como Sandokan, Trinitá, O Silva, O Zé Manel, Casa das Ratas, Rei dos Frangos, Rei das Bifanas ou Rei dos Leitões (não sei porquê, nunca aparecem rainhas). Mas como Cu da Mula nunca tinha ouvido. Mas, insisto, isso foi há muitos anos, tornando-se hoje tão vulgar e familiar como o nome de qualquer outro restaurante.

Fiquei incumbido de organizar um almoço e um dos comensais sugeriu o Cu da Mula. Telefono para fazer a marcação, e atende uma doce e delicada voz feminina: "Boa tarde, fala do Cu da Mula". E eis que num ápice regresso ao dia em que o ouvi pela primeira vez. Como explicar esta repentina estranheza de um nome, ouvido e dito dezenas de vezes ao longo dos anos? Porque se tratou de uma desconhecida voz feminina, igual a tantas outras que nos atendem de uma companhia de seguros, de um consultório médico ou do SNS 24, só que a dizer "Cu da Mula". Uma voz desconhecida, institucional, de uma pureza quase platónica, de uma inteligibilidade deslocada de qualquer contexto quotidiano e informal. Ouvir num telefone "Ok Teleseguros, fala a Marta" é uma coisa, ouvir "Fala do Cu da Mula", uma outra, obrigando-me a perceber a sua verdadeira natureza escatológica, grosseira e deselegante. Eu seria incapaz de dizer a certas pessoas que fui ao Cu da Mula, ou pediria desculpa ao dizê-lo, explicando que não poderia dizê-lo de outra maneira. O que também mostra, e era aqui que pretendia chegar, que muita coisa grosseira e deselegante pode, em virtude do hábito e de um certo sentido de normalidade, passar a ser ignorada e invisível, ou pelo menos despercebida. Até que um dia, graças a uma mudança de perspectiva que nos permite abrir e esfregar a cabeça como por vezes os olhos (no caso do restaurante, abrindo e esfregando os ouvidos) podemos cair de novo na realidade que, não poucas vezes, se revela terrível. Embora nem toda a gente caia, ou, quando cai, já é tarde de mais.