Saio do hotel e dirijo-me a um daqueles simpáticos cafés de Montmartre para o café au lait e croissants da praxe. Peço ao balcão, o dono pergunta qualquer coisa, mas estando a máquina a fazer muito ruído não percebo e, para reforçar, digo-lhe que não sou francês. E responde ele com um genuíno ar de sacana: "Ah, c'est pas grave!". Ora, eu poderia sentir-me ofendido, espetando-lhe desde logo a etiqueta da xenofobia e do nacionalismo na testa, e vendo-o em dia de eleições a votar em Le Pen ou Zemmour. Bastaria interpretar literalmente a sua "boca", desmontando os seus claros e inequívocos pressupostos. Aliás, é o que acontece com um autista. Cumprimentam-no com um "Vai ou não vai?" e ele pergunta "Vou aonde?". Mas mal ele disse aquilo, percebi logo que se tratou de uma genial piada, mais ainda devido à sua espontaneidade, tendo eu reagido com um também genuíno e espontâneo riso. Apesar do pouco tempo que ali passei, deu para perceber que era mesmo assim, um tipo divertido, com sentido de humor. Padecesse ele de xenofobia e nem mo teria dito, limitando-se a servir-me com profiláctica distância e indiferença.
Mais do que pessoas xenófobas, racistas, machistas, predadoras sexuais, misóginas, homofóbicas que, infelizmente, sempre houve e continuará a haver, o que verdadeiramente me mói é a hipersensibilidade de cada vez mais pessoas inteligentes e cultas, sempre de lupa na mão, a desvendarem xenofobia, racismo, machismo, assédio sexual, misoginia e homofobia em toda a parte. Porque em vez de um acto meramente individual que compromete apenas um racista ou um homofóbico, passamos a ter uma sensibilidade colectiva que molda um novo padrão social e mental marcado pela censura, medo, recalcamento e racionalidade reactiva. Interessante mesmo, é tentar perceber, diante de um comportamento, de uma frase, de uma imagem, o que levará uma pessoa a inclinar-se para ver sempre os seus lados negros e pecaminosos. Mas isso é tarefa para um psiquiatra, coisa que eu não sou.