Creio que uma das características de uma pessoa que está a enlouquecer ou a alienar-se do mundo, é não ter disso consciência. Daí o meu relativo, embora prudente optimismo, quando penso que posso estar a enlouquecer. Portanto, talvez não esteja. Mas, se não estiver, algum proveito não me faltará. Acordo e ponho-me a ler o jornal do dia com as suas imensas notícias sobre o que se passa no país e no mundo. Fora os habituais artigos de opinião, sobretudo uma página inteira de Frei Bento Domingues de temática evangélica, só dois textos me chamaram mesmo a atenção, os únicos que li por inteiro: um sobre uma obra restaurada e que irá ser exposta no Museu Nacional de Arte Antiga, e uma crítica musical sobre a apresentação da Sinfonia nº 2 de Mahler, no S. Carlos. Olhei para o resto, até mesmo alguns pedaços, daí não estar alienado do que se passa no país e no mundo. Mas, fechada a leitura, fica o que disse frei Bento Domingues, a minha vontade de ir ao Museu Nacional de Arte Antiga e ouvir a Sinfonia de Mahler.
Isto bate certo com uma coisa que me angustia há muito. Leio um romance e passado algum tempo esqueço-me dos aspectos essenciais do seu enredo. É como se não tivesse lido. Mas li e em muitos casos, com um enorme prazer em ler. E não é só angústia que sinto. Também culpa e uma terrível noção de desperdício. Mas acabo de ser salvo por um livro que comprei há dias, embora já o conhecesse e vagamente folheasse: Perder Teorias, de Enrique Vila-Matas. Onde defende, preto no branco, e com imensa graça, que num romance o mais importante é o estilo e não a trama, perdendo mesmo o respeito por esta. E estamos a falar de um romancista que aproveita para recordar o que uma vez perguntaram a um outro romancista, John Banville: - "Amigo Banville, o estilo é o rei e a trama o soldado raso? Ou vice-versa? - O estilo avança dando passos largos triunfais, a trama caminha atrás, a arrastar os pés". Termino com o último parágrafo da crónica de Pedro Boléo sobre o concerto no S. Carlos: "Depois de ver o céu transcendente e a terra cá em baixo a dançarem um com o outro, resta-nos passar no bengaleiro, vestir o casaco, voltar à vida lá fora. O que será que de nós continua? Nada, tudo, uma pequena luz".