29 abril, 2023

O BERBIGÃO

Lisboa, FNAC do Aeroporto, 2023

Há já uns bons anos, em Londres, fiquei duas noites em casa de uma professora reformada que nunca tinha visto. Pouco depois das apresentações, pergunta-me o que faço, digo que sou professor, pergunta-me de quê, eu digo que de Filosofia, rematando então com esta magnífica frase: "Oh, you must be very clever!" Em décadas de vida não foi caso único (Filosofia? Oh!), lembrando-me deste em particular pela forma espontânea, entusiástica e frontal com que o disse. Existe mesmo um estereótipo para a Filosofia, como existe para taxistas, empresários do norte, poetas ou agentes imobiliários. Mas, como acontece tantas vezes com os estereótipos, trata-se de uma distorção ou exagero da verdadeira realidade.

Tal como as emoções, a inteligência tem uma função adaptativa. É pois com esse propósito que foi mais dada a uns animais do que a outros, sendo o homem a cereja em cima do bolo da cadeia intelectual. Graças à inteligência, o cão faz coisas que uma galinha não faz e esta coisas que um berbigão não faz, gerindo cada um a sua vidinha de acordo com as suas possibilidades. Ora, se pensarmos nos grandes desígnios que movem a humanidade, bem superiores aos do cão, galinha e berbigão, fica fácil de entender que a sua inteligência teria de ser não apenas superior, mas bastante superior. Prova-se assim, empiricamente, que um professor de Filosofia, tanto durante o seu curso universitário, como durante a sua actividade docente, pratica um tipo de pensamento em clara contradição com o que se espera de um ser humano, remetendo-o, na cadeia intelectual, e no que à relação com o mundo e a vida diz respeito, para a função adaptativa que encontramos no berbigão. Vale-nos a complacência de filósofos como Jeremy Bentham, para quem a vida de um berbigão pode ser tão digna como a de Donald Trump ou José Sócrates.