02 abril, 2023

RAIVA

Pelas minhas contas, 46 anos depois voltei a ver Taxi Driver que, diga-se, tirando um ou outro pormenor, envelheceu bem. Autobiograficamente, lembro-me de ser o meu primeiro "Interdito a menores de 18 anos" com autorização parental. Quanto ao filme, lembrava-me de algumas coisas, não por memória directa, mas por fotografias que fui vendo ao longo dos anos e a foram actualizando. Por exemplo, a mudança de visual do protagonista, ou Jodie Foster e Cybill Shepherd, das quais jamais me lembraria por ainda não serem "Jodie Foster" e "Cybill Shepherd". E foi uma agradável surpresa ver logo no genérico Bernard Herrmann como autor da banda sonora. Na minha arruinada e condensada memória, o que mais resistiu foram as ideias de sujidade, violência, e um taxista deambulando pela noite de Nova Iorque. Acrescentaria agora uma outra: raiva. Não se trata de reduzir o taxi driver a isso, pois é psicologicamente bem mais complexo, nem o mundo em que vive. Mas sim, há raiva, raiva social e racial. 

A raiva é uma das seis emoções básicas, e ainda bem que existe. Mas, como emoção, deve ser apenas reactiva e não se transformar num sentimento permanente. O medo e o nojo permitem-nos estar vivos, mas viver com medo e nojo tornaria a vida insuportável. A alegria é maravilhosa, mas vivendo num estado de permanente alegria (não num sentido espinosista ou religioso) pareceríamos tontinhos. A tristeza é uma consequência natural e desejável de certas situações, mas viver em estado de permanente tristeza tira sentido à vida. Ora, transformar a raiva num sentimento estável que mobiliza ideias e acções passou a ser, socialmente, um filme de terror diário, filmado, não numa Times Square underground dos anos 70, mas nas zonas normais das cidades, à luz do dia, protagonizado por pessoas normais que desejam ter uma vida normal. Saber como responder a essa raiva, não é tarefa fácil para quem governa, mas, não encontrando as respostas certas, governar tudo o resto ficará ainda mais difícil.