Vivo rodeado de pios e indulgentes objectos. Por exemplo, o meu telemóvel. Enquanto os telemóveis dos filhos lhes dizem que devem dar 10.000 passos por dia, quem sabe se para chegarem aos 130 anos, ao meu bastam 6000, meta que atinjo sem dar por isso enquanto vou ali e já venho. Mas surpreendente é o espelho da casa de banho. O Nietzsche dizia que quando educamos bem a nossa consciência ela beija-nos enquanto morde. É mesmo isso que se passa com o meu espelho, não enquanto reflexo do meu corpo, mas extensão da minha consciência, digno herdeiro do espelho da rainha má da Branca de Neve. Vejo o meu rosto ao espelho e não consigo ver a idade que tenho. Eu bem tento, mas o grande amigalhaço não me deixa. Especularmente, poderia dizer que eduquei bem a minha consciência para, por sua vez, educar bem o meu espelho de modo a não me revelar a idade, mas um jovem de 40 ou 50. Mas não, sei bem a idade que tenho, a qual não me importuna, nem faço por me enganar com ela. Há, porém, um outro e implacável espelho que não me deixa enganar: a realidade. E não vivendo solitariamente no meu espelho, mas no da realidade, a minha imagem é-me muitas vezes devolvida por ele. Como? Sempre que vejo rapazes e raparigas da minha idade que já não via há muito. Aí sim, sempre que os vejo, vejo-me a mim mesmo. Como se vivesse diariamente sob o efeito da poção referida no conto A Experiência do dr. Heiddeger, de Nathaniel Hawthorne, para repentinamente se dissipar. Depois, regressando a casa, com 6000 ou mais passos dados, volto de novo para o meu espelho, desta vez para os passos em volta.