Pouco sei de Medicina mas não deixo de achar graça, pela sua ingenuidade, quando vejo certas explicações da Medicina Grega, ou mesmo de séculos recentes, para certos fenómenos orgânicos, nomeadamente no que aos humores diz respeito. O que diante do corpo deste homem me ocorre é um assumido exercício de ingenuidade: seguir a minha intuição como se vivesse num remoto século em que ainda pouco se sabe sobre o corpo humano. O que vejo, para já? Um homem de boca escancarada e olhos a semicerrar por se estar a esganiçar, mas o que verdadeiramente impressiona é o seu braço com todas aquelas dilatadíssimas veias a desaguar num punho fechado na sua máxima força, qual mão de um náufrago agarrada ao ramo de uma árvore para se poder salvar. Posto isto, a minha ingénua intuição médica vê o seguinte: um feixe de veias dilatadas para que sangue e bílis amarela se concentrem o mais possível na direcção do punho, à custa de uma diminuição do fluxo sanguíneo no cérebro, forçando assim o semicerrar dos olhos e torturados esgares enquanto emite sons tão impróprios de um ser racional como um urro ou um relincho.
Já por várias vezes fiquei embasbacado com certas figuras humanas em pinturas e fotografias. O mesmo acontece aqui. Não vejo um homem, mas uma figura sobrenatural, um Prometeu carregando o peso do sofrimento humano no seu punho fechado. Olha-se para ele e vislumbra-se a virilidade de um Sansão ou de um Hércules, a força dramática de séculos de revoluções e revoltas, de míticos e eternizados combates como o de Aquiles e Heitor, de um Aníbal lutando contra os romanos ou de um Afonso Henriques com a sua lendária espada a enviar mouros para os braços das suas virgens lá no céu. O choque vem depois com a substância jornalística da situação. Ele está está ali enquanto professor e sindicalista, por questões corporativas. É professor como poderia ser maquinista da CP ou funcionário judicial, fazendo exigências ao respectivo ministério. Não é, como poderia parecer, o Armagedão ou algo pouco menos que isso e onde se jogasse a vida e o destino da humanidade. Daí que, na minha ingenuidade médica, o que vejo não é um professor ou sindicalista, mas uma vítima do seus humores (ou, noutra perspectiva, de uma radical ausência dele), inchando as suas veias entre um punho tenso e um cérebro deslaçado como a maionese, enquanto atrás de si marcha um exército, como na lenda de Hamelin, ao som de uma boca transformada em megafone.