11 março, 2023

VAGÃO J

Algures entre Porto e Entroncamento, 2015

Uma coisa que falta muito ao povo são as palavras. É o que se deverá concluir depois de ouvir tantas vezes o povo dizer "Não há palavras". Não quer isto dizer que o povo seja desapalavrado ou tenha problemas na Área de Broca, até porque o cérebro do povo é igual ao cérebro de quem não é do povo, e se há coisa do que mais do que o Bom Senso está bem distribuída pelas aldeias e cidades são as disfunções, como é o caso da afasia. O povo não é afásico, apenas lhe falta certas palavras. Daí Sancho Pança, e Sancho Pança é o povo, gostar tanto de provérbios, um carimbo sempre pronto para substituir uma assinatura pessoal desenhada à mão. Pega-se no carimbo, dizendo-se que não se pode ter sol na eira e chuva no nabal ou que em casa de ferreiro, espeto de pau, e fica tudo dito. E lá no fundo o povo acaba mesmo por ter mesmo palavras, por vezes até de mais e para o que menos devia. As palavras faltam, sim, como acontece por vezes com o passo em relação à perna, quando a emoção esmaga a palavra, ficando esta demasiado amolgada para ser usada.

Acontece que há mesmo palavras, ou melhor, palavra, para o que povo diz não haver palavras, e descobri-o no ÍPSILON de ontem num artigo de Alexandre Melo, crítico de arte, ensaísta, curador, cineasta, professor e ex-assessor cultural de José Sócrates. Após um longo discurso sobre si próprio (não é em vão que se é assessor cultural de José Sócrates) sob o pretexto de entrar como actor no último filme do seu grande amigo Albert Serra (realizador do excelente A Morte de Luís XIV, que vi numa sala de cinema com três pessoas já comigo incluído, e de Liberté, que, com muita pena minha, ainda não consegui ver), fala do que a foi a experiência de o ver na grande sala Lumière, em Cannes: "Inadjectivável". Eis a palavra para o que não há palavras, a palavra que o povo ainda não conseguiu encontrar para quando não tem palavra. Pragmaticamente, haverá diferença entre o popular "Não há palavras" e o erudito "Inadjectivável"? Há. Como numa viagem de comboio entre o Porto e o Entroncamento, indo uns em 2ª classe e outros em 1ª, mas saindo depois no mesmo destino.