09 março, 2023

RASKÓLNIKOV DE TRAZER POR CASA

Começo a corrigir testes e logo me transformo num Torquemada de esferográfica vermelha à caça de heresias ortográficas. E por muito que certos alunos se indignem, sobretudo os que os dão, na minha praia, dar erros ortográficos implica desconto na cotação da resposta. Acontece ter há dias dado de caras com a palavra "objecção", e confesso que aqui o meu cérebro ficou baralhado e sem saber bem o que fazer. Eu tinha a obrigação de sublinhar a palavra, não só para a penalizar mas ainda ajudar a aluna a ter consciência do seu erro. Porém, sendo eu contra a idiotice do AO (ontem, durante a apresentação de um PPT, a antiga palavra "concepção", agora "conceção", foi lida pelo aluno como "concessão"), tomei a liberdade de decidir que me iria esquecer de sublinhar. Quer isto dizer que a rapariga errou e eu, apreciando o seu erro e apreciando eu próprio errar como ela, tornei-me tão cúmplice dele como se tivesse sido eu próprio a dá-lo. 

Com a distinta diferença de não haver velha, foi o meu momento Raskólnikov, que a matou por ser estúpida e repugnante, por considerar que merecia e porque teve liberdade e poder para o fazer. Um crime, de acordo com a lei. Mas o que vale a lei diante desse implacável e justo tribunal que é a nossa consciência? A lei é opaca, feita por seres humanos muitas vezes tão repugnantes como a velha, enquanto a nossa consciência, também muitas vezes, é um panóptico de vidro onde as ideias se movimentam com clareza. Não por acaso, dizem os filósofos, moralidade não tem que bater certo com legalidade. Qual então o meu dever, alinhar na legalidade, ou no que a legalidade condena mas a minha consciência legitima? Antígona ou Creonte, eis um atávico duelo que ainda hoje nos põe a gaguejar. Vale-me a minha escolha não ter o peso da escolha de Antígona, que também não tem o peso da escolha de Raskólnikov. Antígona não matou ninguém e eu muito menos, apenas uma palavra num insignificante teste que já foi esquecido pela aluna. Mas não por mim. Porque sei que os grandes e mais dramáticos momentos da consciência obedecem aos mesmos princípios dos mais pequenos e irrisórios.