02 março, 2023

SARA

Hotel pequeno e familiar, a recepção mesmo ao lado da sala dos pequenos almoços. A recepcionista, loira, olhos azuis, quer dizer, ar absolutamente gaulês (daria uma excelente Marianne), servia também o pequeno almoço. Perguntava-me o que queria tomar, eu dizia, esperava sentado e ela servia, dizendo-se apenas as palavras da praxe nestas circunstâncias, isto, claro, em Francês. Uma simpatia franca mas contida, mesmo estando sempre sozinho na sala, excepto numa manhã em que estavam duas mulheres noutra mesa. Ainda brinquei, dizendo-lhe que não devia ser nada fácil começar a trabalhar àquela hora (eu sou sempre o primeiro a chegar ao pequeno-almoço), ela riu, sim, não é nada fácil, e a coisa ficou por aqui.

Na última manhã, estando de novo sozinho, percebendo que ela estaria com vagar, aproveito para esclarecer uma dúvida, e pergunto se por ali não se gozavam férias de Carnaval. Explicou que não, embora aproveitem para realizar umas actividades alternativas e, posto isto, pergunta-me de onde venho. Digo que sou português e logo um imprevisto sorriso lhe abre todo o rosto: "Eu sou brasileira!". Logo subindo a familiaridade de tom, é então que, já respectivamente na língua de Eça e de Machado de Assis, passamos às apresentações. No caso dela, vinda de São Paulo, onde estudou Neurociências, que interrompeu, estando agora ali no primeiro ano de Ciências Cognitivas, tendo aquele part-time no hotel. Eu devo ter feito aquela cara de Lobo Mau dos desenhos animados quando se põe a imaginar um frango a rolar no espeto, digo que sou de Filosofia,  ela faz aquela cara de Lobo Mau dos desenhos animados quando se põe a imaginar um frango a rolar no espeto, e, pouco depois, com todo o vagar do mundo, já estamos a falar de história da ciência, das ciências serem filhas da Filosofia, do cérebro e da mente, do Quarto Chinês, ela de Espinosa e eu do Cogito cartesiano e sei lá mais o quê. Horas depois, durante o check out, após calorosa despedida, lembro que se não fosse a minha pergunta sobre as férias do Carnaval, eu ficaria esquecido na minha condição de mais um cliente estrangeiro numa sala de pequenos-almoços, e ela esquecida na sua condição de mais uma recepcionista francesa que, delicada mas contidamente, mos servia. Graças ao Carnaval, que detesto, fiquei com uma história para contar.