06 março, 2023

CATCH 22 CANÓNICO


Fátima, 2009

«[...] e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha. Às vezes  revoltava-se contra estes desfalecimentos, batia o pé: - Que diabo, é necessário ter juízo! É necessário ser homem! Descia, ia folhear o seu Breviário; mas a voz de Amélia falava em cima, o tic-tic das suas botinas batia o soalho... Adeus! A devoção caía como uma vela a que falta o vento. As boas resoluções fugiam, e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cérebro [...] Ficava todo subjugado, sofria. E lamentava então a sua liberdade perdida: como desejaria não a ver, estar longe de Leiria, numa aldeia solitária, entre gente pacífica, com um criada velha cheia de provérbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e os galos cacarejam ao sol! Mas Amélia, de cima, chamava-o -  e o encanto recomeçava, mais penetrante.»


Calhou ter lido primeiro O Crime do Padre Mouret, ainda no tempo da faculdade. Gostei muito, o que pode ter contribuído, pela inevitável comparação, a considerar pouco tempo depois O Crime do Padre Amaro uns furos abaixo. Mas há uns dois anos regressei ao romance de Eça e, já sem o espectro de Mouret a assombrá-lo, lá me rendi. Há dois Amaros, o do final, que se revela frio, calculista, egoísta, diria mesmo execrável. Mas não temos como não simpatizar com o jovem Amaro do início, mentalmente são num corpo são, sentindo-se, nunca tanto como hoje, à medida que melhor se conhecem os bastidores da Igreja Católica, a sua naturalíssima relação com Amélia como lufada de ar fresco numa sala irrespirável e bem longe de coincidir apenas com a beata e bafienta Leiria do século XIX. Ao sentir revolta, dizendo a si próprio para ter juízo e ser homem, o jovem Amaro acredita que o fará pelo dever de deixar de o ser e que quanto mais homem for, menos homem será, ou que quanto menos homem for, mais homem será. Mas é precisamente o contrário e, neste sentido, lamenta-se a, pelos vistos, enorme falta de homens na Igreja Católica. Talvez as mulheres pudessem dar uma ajuda, não significando isto que se deva à falta delas o dramático peso de tanto homem com medo de o ser. Talvez seja antes o medo de o ser que os leva até um refúgio onde as mulheres continuam a não ter lugar.