07 março, 2023

HEIMAT

Durante a aula, interrompo-me para ir ao YouTube em busca da cena na qual a preceptora serena a miudagem com o My Favourite Things, acreditando de antemão que seria tanto do conhecimento das alunas como o que é um transepto. Isto, sem imagem pois só queria mesmo a canção. Para quê? Para nada. Não o tivesse feito e as alunas sairiam da aula a saber o mesmo. Mas, especialista em dizer ou fazer coisas que não servem para nada, apenas me limitei a seguir a minha natureza. Entretanto, começam a ouvir a canção e logo algumas reagem com visível satisfação, identificando o filme, dizendo uma ser aquela a sua canção preferida, outra, que é aquela das notas musicais. E eu, sem querer acreditar no que estava a ouvir, num estado de feliz perplexidade como se o meu tempo perdido fosse reencontrado naquelas garotas a meio caminho entre poderem ser minhas filhas e netas. 

Dou aulas há muitos anos, fui professor de um pai e de duas mães daquelas alunas. Quando comecei não estava muito longe da idade deles. Mas ir envelhecendo enquanto os alunos que todos os anos tenho à frente permanecem sempre na mesma idade, faz com que os seus mundos, muito naturalmente, tenham cada vez menos que ver com o meu. Mas naquele momento, e apesar da diferença de idades, tive uma sensação de pertença graças à experiência de um tempo suspenso. Mais cedo ou mais tarde irão aparecer alunos que já não irão reconhecer a canção e saber de que filme se trata. Mas também está para breve o dia em que eu já lá não irei estar para, em vez de uma feliz perplexidade, perceber que o meu mundo foi atrás de mim, ou que fui eu atrás dele, até desaparecer como nos finais dos filmes em que se vê um comboio a afastar-se lentamente no horizonte enquanto vai passando a ficha técnica e as pessoas levantadas para se irem embora.