14 março, 2023

DESENCANTO

Atenas, quiosque, 2019

A physis divina grega faleceu, morta pelo Deus judaico-cristão. Este mesmo Deus falece, isto é, retira-se e é morto pelo homem que quer ocupar o lugar deixado vago e erguer-se como senhor. Kostas Axelos, A Questão do Fim da Arte e a Poeticidade do Mundo, 1990

Eric Schmidt, ex-engenheiro da Google e conselheiro de Obama para a ciência e tecnologia, publicou um artigo no El País. Fiquemos só pelo lead: "A capacidade de inventar, adoptar e adaptar novas tecnologias, é decisiva na luta pela hegemonia entre os Estados Unidos e a China". Não consigo discordar, seria como discordar da Terra ser um planeta em vez de um queijo. E historicamente nunca foi outra coisa, mesmo sem Estados Unidos e China. A essência da técnica confunde-se com essência do homem e a técnica traz poder, que de resto não é só militar, veja-se o célebre Kitchen Debate no qual Nixon e Kruschev chegam a discutir as virtudes de um espremedor de limão eléctrico. O homem, centro de uma natureza, criada por Deus para ele, fez da natureza uma fábrica para, através da técnica, obter o maior rendimento possível através de matérias-primas, exorbitando assim o consumo, ainda que mal distribuído. Foi sempre assim, e não vejo como deixar de continuar assim. 

Mas eu leio o artigo e a minha vontade é voltar ao Carnaval para me disfarçar de Heidegger e rapidamente fugir para um poema de Hölderlin, ou um daqueles quadros de Poussin ou italianos em que deuses e mortais se misturam para habitar poeticamente a terra. Um desejo de evasão, de recusar a humanidade e o peso da história sobre os ombros do nosso século. O homem, impedido pela sua essência técnica, nunca poderá habitar poeticamente a Terra. De resto, o poeta não é verdadeiramente um homem, e não é preciso ser Marinetti ou Champalimaud para ver mais humanidade num martelo pneumático, herdeiro do sílex paleolítico, do que num poema, que não passa de uma sublimação ou acto de resistência do homem face à sua natureza técnica e pragmática. Dizer, como Schmidt, ao comparar a era da I.A. com a da Idade do Bronze, que "Agora, em vez de depender da riqueza dos recursos naturais ou o domínio de uma tecnologia concreta, o poder de um país reside na sua capacidade de inovar continuamente", serve só para mesmo lembrar que, após o desencantamento do mundo, não há mesmo lugar para reencantamentos.