14 fevereiro, 2023

UM DIA POUCO CÂNDIDO

Pensou bem quem fez coincidir o dia dos namorados com o da disfunção eréctil. Dê lá por onde der, o amor é um estado químico cuja ligação aos circuitos do córtex pré-frontal é a mesma que assola as penitentes vítimas da disfunção eréctil cujas libações amorosas se transformam em desespero sacrificial. Talvez influenciado pelo National Geographic, observar o ritual de levar a amada a jantar, de oferecer flores ou chocolates em forma de coração assim como quem preenche o IRS, lembra-me tentilhões ou esgana-gatos cativos no seu castelo filogenético e submetidos ao poder real do gene egoísta. Nada há de errado nisto, bem pelo contrário, a sábia natureza sabe bem o que faz, seja com as suas recatadas tartarugas ou com os seus pródigos sapiens. 

Não se veja em mim um cínico, um herdeiro do grosseiro materialismo francês do século XVIII ou do dialéctico, um fanático do catecismo positivista, um desvairado Resnais deslumbrado com o laboratório do dr. Laborit. Creio, sinceramente, ser o amor coisa bela e a cultivar como um jardim, clássico, barroco ou romântico, ao estilo francês ou inglês conforme o gosto dos enleados e enlevados cândidos deste mundo. E que a sermos atingidos por uma das setas de Cupido, que seja a de Apolo e não a que condenou Dafne à indiferença amorosa, como bem explica Ovídio, não na Arte de Amar no caso deste tão infeliz episódio, mas nas Metamorfoses. Eis porque um «dia dos namorados» consegue ser tão empolgante como um corso carnavalesco em Ovar num melancólico dia de chuva e frio. Daí a feliz coincidência no calendário. É que o viço das flores do jardim não demora a disfuncionalizar-se nos jarros e não é por os chocolates terem forma de coração que deixam de se derreter nas bocas para logo se desvanecerem na imensidão de um corpo já derrotado por súcubos e íncubos.