15 fevereiro, 2023

MORRER DE REALIDADE



Sei que posso morrer daqui a umas horas com um aneurisma, como daqui a anos na cama de um hospital a ver a SIC Notícias ou a CNN Portugal. Seja lá quando for, começa a escassear a areia na ampulheta. Daí o meu regozijo por não sermos como os habitantes da Laputa, ilha voadora onde nunca estive, mas esteve Lemuel Gulliver, tendo coisas para nos contar a respeito dos laputianos. Por exemplo, tal como nós, têm dois olhos, só que um virado para dentro e outro para cima, o que lhes permite alhearem-se do que se passa à sua volta para se concentrarem apenas no que consideram importante, no seu caso, e como sinal da sua excentricidade, a matemática e a música. Ainda assim, felizmente, têm uns criados cuja única função é baterem-lhes na boca e olhos com um saco de ervilhas sempre que seja preciso dar atenção a algo ou falar, inclinando então a cabeça para a esquerda ou direita. Ora, quanto mais penso no pouco tempo que me resta, mais me arrepio só de pensar na terrível anatomia ocular com que a natureza os dotou, dando graças pelos nossos dois olhos bem cravados no rosto, dispondo-nos assim naturalmente para sermos abalroados pela realidade pura e dura.  

Suponhamos que tenho duas horas de vida e que durante esta migalhinha de tempo serei obrigado a ouvir uma sonata ou a estar mergulhado em ociosos pensamentos. Um verdadeiro desperdício quando à minha volta acontecem coisas tão importantes como os lucros da GALP, a redução de salários na TAP, reivindicações de professores ou a existência do dr. Luís Montenegro. Por muito bela que seja a sonata, a sinfonia, a ópera, ou por muito elevados, como corpos celestes, que sejam os meus pensamentos, estando com os pés para a cova seria digno de uma mais nobre despedida. E quem diz duas horas, diz uns escassos dez anos. O tempo de estar vivo é precioso, sobretudo por ser tão efémero. Ora, como não tenho o dom de poder de, ao mesmo tempo, virar um dos ouvidos para uma sonata e o outro para o dr. Montenegro, ou de me encontrar num estado de pura fruição intelectual enquanto uso os olhos para ler ou ver notícias sobre os lucros da GALP, só posso mesmo congratular-me com a anatomia ocular e auditiva com que a natureza me brindou para, no pouco tempo que me resta e em estado de Graça como Aschenbach na sua cadeira de praia em Veneza, despedir-me do mundo sugando o seu tutano com os olhos diante de um noticiário.