27 fevereiro, 2023

RATOS E HOMENS


Berlim, 26 de Fevereiro de 2017

Quase todas as fotografias ou documentários dos anos trinta são a preto e branco, reforçando ainda mais a sua verdadeira distância histórica. Olha-se para as fotografias e documentários com as pessoas a andar e gesticular muito depressa como nos filmes do Charlot e percebe-se que foi há muito tempo. Houvesse cinema no tempo de D. Maria II e as imagens não seriam diferentes das de 1933, ambas iguais às da saída da fábrica filmada pelos irmãos Lumière, em Lyon. Tudo isso há muito tempo e sentimos bem a diferença. Um ano não são cinquenta anos, nem cinquenta são cem. Pensa-se no dia 27 de fevereiro em que estivemos confinados e no 27 de Fevereiro em que o Reichstag foi incendiado, e a distância é abissal. Basta pensar que os anos trinta estão para nós como o reinado de D. Maria II para o ano em que nasci, já a caminho do assassínio de JFK e de Armstrong ter posto o pé na Lua. Sim, foi há bastante tempo o incêndio do Reichstag. Acontece que tais fotografias e documentários sugerem não apenas uma distância histórica mas entre duas ordens de realidade.

Alguém, hoje, consegue imaginar-se em 1933, naquele parlamento a preto e branco, no meio de pessoas a andar e gesticular como ratinhos insuflados com adrenalina? E alguém imagina Hitler a discursar, hoje, neste colorido parlamento ou se imagina com o telemóvel a tirar fotos ao soldado a içar a bandeira soviética para depois aparecerem no Instagram, onde hoje está uma cúpula de vidro sob a qual se vai mirando as vistas de uma cidade moderna e pujante? Não, e não é só por causa do tempo, mas das diferentes naturezas sugeridas pela cor ou sua ausência. Quando vemos a rapariga de A Rosa Púrpura do Cairo a entrar para dentro do filme, é cinema. Mas também é o que sentimos perante o Reichstag a preto e branco e o Reichstag a cores. Convém no entanto lembrar ser a nossa percepção do tempo ilusória. O tempo faz esquecer, o tempo distorce, o tempo ludibria, contribuindo ainda mais para isso, a ausência de cor. Mas as cores do dia 26 de Fevereiro de 2017 são as mesmas do dia 27 de Fevereiro de 1933. Os passos e os gestos como nos filmes de Charlot são os nossos passos e gestos. Talvez no futuro, sabe-se lá com quê, nos vejam hoje como hoje vemos aqueles documentários tão parecidos com os filmes de Charlot. Olhamo-nos ao espelho e o que vemos são seres humanos. Mas muitas vezes não passamos mesmo de ratinhos insuflados com adrenalina.