28 fevereiro, 2023

A CAVE

Para tratar de questões morais tanto se pode ir das ideias para a vida como da vida para as ideias. Na mesma linha do que faz Rafael na Escola de Atenas: Platão com o dedo elegantemente apontado para o alto, Aristóteles esticando o braço para a frente. Para início de conversa sobre o que pode ser uma vida boa, John Kekes, um filósofo conservador, propõe substituir o platónico dedo em riste, demasiado geral e descarnado, pelos exemplos da literatura e biografias, dialogando com personagens com cujas experiências podemos aprender. Eu aproveito logo para me imaginar a comer javali com Macbeth, a tomar chá com Isabel Archer ou Anna Karenina, dar um passeio com Julien Sorel ou Pierre Bezukhov, beber um copo de vinho com Jean Valjean ou Martin Eden, ir à pesca com Robinson Crusoe, ou estar sentado à beira de um regato com a pastora Marcela. 

Sem dúvida, estimulante. Mas, por muito ilustrativas que sejam as vidas dos outros, os bons ou maus exemplos, ao entrarem na nossa consciência logo se convertem em fantasmas. A consciência de que peixe cozido com legumes é mais saudável do que um bife de carne vermelha com batatas fritas não nos faz desejar o peixe nem repudiar a carne. É verdade que uma consciência aberta ao exterior trará sempre alguma luz ao nosso caminho. Não faltam mesmo luzes que mais parecem um esplendoroso fogo de artifício. Acontece não ser a consciência e a inteligência a comandarem a vida, mas a vontade. Ou a falta dela. E a vontade nem está para onde aponta o dedo de Platão, nem à frente dos olhos de Aristóteles. A vontade é uma cave húmida e escura onde nunca se sabe o que se pode encontrar.